A Construção de uma trajetória não Linear no Direito
Reflexões sobre caminhos, escolhas e propósito na carreira jurídica
Por Marcela Kohlbach*
Tenho para mim que dificilmente uma trajetória profissional se dá de forma totalmente linear e programada. O discurso da linha reta, da ascensão contínua e previsível, frequentemente não reflete as nuances do mundo real. No entanto, é perfeitamente possível — e necessário — estabelecer um norte: um conjunto de princípios, metas e aspirações que orientam nossas escolhas ao longo do caminho.
No meu caso, o primeiro ponto de inflexão ocorreu ainda nos anos iniciais da advocacia. Tive a oportunidade de iniciar minha carreira em um prestigiado escritório de advocacia, onde fui apresentada à arbitragem. Aquela experiência inicial foi reveladora: o contato com casos complexos, a lógica procedimental própria e a sofisticação dos debates despertaram em mim um entusiasmo quase imediato. Desde então, tive certeza de que queria direcionar minha trajetória nesse sentido.
A partir daquele momento, aproveitei cada oportunidade prática para trabalhar com arbitragem, buscando me envolver o máximo possível nos casos. Atuei como secretária de tribunais arbitrais, função que me permitiu vivenciar de perto os bastidores dos procedimentos e a dinâmica entre as partes, os árbitros e os advogados. Essa experiência foi fundamental para que eu traçasse meu primeiro objetivo profissional de longo prazo: atuar como árbitra.
Essa aspiração me levou, naturalmente, à academia. Meu percurso acadêmico — no mestrado e no doutorado — foi cuidadosamente construído para unir minhas duas maiores paixões: o processo civil e a arbitragem. Desenvolvi pesquisas que buscavam construir pontes entre esses dois campos, investigando como os princípios processuais se manifestam, se adaptam ou são tensionados no ambiente arbitral. Essa interseção entre teoria e prática é, até hoje, um dos motores da minha atuação.
Contudo, aprendi com o tempo que a carreira jurídica — assim como a vida — raramente segue uma trilha previsível. Por mais que tenhamos objetivos claros, muitas vezes são os próprios caminhos que nos escolhem.
Foi com esse espírito aberto que, após alguns anos na advocacia tradicional, aceitei o desafio de migrar para uma área ainda incipiente no Brasil: o financiamento de litígios. Na época, recebi alertas de que seria uma decisão arriscada, que o setor era instável e pouco desenvolvido. E, de fato, era. Mas também representava uma oportunidade única de olhar para a arbitragem — e para o contencioso em geral — a partir de uma perspectiva totalmente nova.
Durante seis anos atuei em uma das primeiras empresas brasileiras a estruturar de forma profissional e sofisticada o financiamento de litígios, com especial atenção às arbitragens. Esse período foi de intenso aprendizado. Pude analisar um portfólio robusto e diversificado de casos, que envolviam disputas nacionais e internacionais, públicas e privadas, em diferentes setores. Esse contato constante com casos de grande complexidade me proporcionou uma visão estratégica ampliada.
Mais do que o conhecimento técnico, esse trabalho me trouxe uma habilidade essencial à advocacia contemporânea: a análise de risco. Avaliar juridicamente um caso é importante, mas compreender sua viabilidade econômica, seus desdobramentos reputacionais e sua chance de êxito a partir de múltiplos ângulos traz um diferencial para o profissional da área jurídica. E foi essa lente multidisciplinar que passei a incorporar no meu dia a dia.
Apesar de todos os ganhos, sentia que algo me faltava. Estar distante do front da advocacia — do contato direto com o cliente, da construção da estratégia processual, da imersão nos autos — me deixava inquieta. Além disso, o objetivo inicial de atuar como árbitra ainda parecia distante.
Foi nesse momento que tomei a decisão de retornar à advocacia contenciosa, aceitando o convite de integrar um escritório especializado em direito marítimo, área até então nova para mim. Essa transição exigiu estudo, adaptação e humildade para aprender com colegas já consolidados no setor. Mas a recompensa foi imediata: voltei a atuar em arbitragens, agora com uma bagagem muito mais sólida.
Esse retorno confirmou o que eu já suspeitava: a arbitragem é, de fato, meu lugar profissional. Não porque seja um campo fácil ou isento de desafios — muito pelo contrário —, mas porque me instiga a buscar constantemente a excelência. Trabalhar com algo que nos desperta paixão genuína é, acima de tudo, profundamente recompensador.
Foi também nesse novo capítulo que começaram a surgir as primeiras indicações para atuar como árbitra. Percebi, com alegria, que aquele objetivo que parecia distante começava a tomar forma concreta. Certamente, minha atuação acadêmica e a docência contribuíram muito para essa transição, abrindo portas, construindo reputação e gerando conexões.
Em janeiro de 2024, tomei uma das decisões mais difíceis — e mais importantes — da minha carreira: decidi deixar o escritório onde atuava para abrir minha própria banca de advocacia. Tomei essa decisão sozinha, sem clientes fixos, apenas com alguns casos em que eu atuava como árbitra. O frio na barriga foi — e continua sendo — real. O medo de não conseguir, de fracassar, de não ser bem recebida pelo mercado… tudo isso era (e ainda é) legítimo.
Mas aprendi que o medo, por si só, não deve nos paralisar. Ele pode até ser uma companhia constante, mas não precisa ser um obstáculo intransponível. Decidi seguir em frente mesmo com medo — e posso afirmar, com convicção, que foi a melhor decisão que já tomei.
Hoje, minha banca está prestes a completar dois anos. Sinto-me profundamente realizada por poder trabalhar com aquilo que amo: atuar como árbitra, parecerista e advogada, sem abrir mão da atividade acadêmica e da docência.
Reflexões de uma trajetória em construção
Se pudesse compartilhar alguns aprendizados com quem trilha caminhos semelhantes, destacaria os seguintes pontos:
1. Comprometimento e qualidade técnica geram frutos.
A capacitação constante nem sempre traz retorno imediato. Às vezes, plantamos sementes que levam anos para germinar. Mas a consistência, a seriedade e a entrega geram reconhecimento. A excelência é, em si, uma forma de comunicação silenciosa e eficaz.
2. Comunique seus objetivos.
É comum que os colegas não saibam exatamente o que fazemos ou desejamos fazer. No início do meu escritório, percebi que muitas pessoas sequer sabiam que eu queria atuar como árbitra. Falar sobre nossas metas e estar disponível para novas oportunidades é parte fundamental do processo de construção profissional.
3. Solidariedade intelectual é multiplicadora.
Compartilhar conhecimento é um ato transformador — para quem recebe e para quem oferece. As pessoas mais bem-sucedidas que conheço são aquelas que dividem suas ideias, estimulam debates e constroem redes colaborativas. A generosidade intelectual também é uma forma de liderança.
4. Rede de apoio importa — e muito.
Especialmente para as mulheres no ambiente jurídico, contar com uma rede de suporte é essencial. Sou parte de dois coletivos femininos — o “Processualistas”, com foco acadêmico, e o “Estratégicas”, com viés corporativo — que foram e continuam sendo pilares importantes na minha trajetória. Construir espaços seguros de troca e apoio é estratégico e necessário.
5. As oportunidades nem sempre vêm de onde esperamos.
Às vezes, apostamos em um projeto esperando um resultado específico, mas o retorno vem de outro lugar. É importante estar aberta a novas oportunidades, muitas vezes inesperada e de ambientes e situações que sequer imaginávamos. Muitas das melhores oportunidades que tive surgiram de formas improváveis.
Conclusão: caminhar com propósito, crescer com consistência
Sou profundamente grata a todas as pessoas com quem tive a chance de trabalhar ao longo da minha trajetória. Cada uma delas, à sua maneira, contribuiu para que eu chegasse até aqui. Ter um escritório que carrega o meu nome é mais do que um desafio — é a expressão de uma construção autoral, de um caminho que se desenha com coragem, resiliência e propósito.
A jornada está longe de acabar. Ainda há muito a aprender, novos desafios a enfrentar e metas a alcançar. Mas olhar para trás e perceber o quanto já foi construído — mesmo com todas as incertezas — é, por si só, uma fonte de motivação.
Construir uma carreira jurídica sólida e alinhada com valores pessoais e profissionais exige, acima de tudo, consistência, escuta ativa e abertura para o imprevisível. O direito — e especialmente a arbitragem — não é uma ciência exata nem um campo de atuação com trajetos padronizados. Trata-se de um ecossistema complexo, em constante transformação, que exige sensibilidade para reconhecer oportunidades e coragem para tomar decisões que, à primeira vista, podem parecer contramão.
Nesse processo, o autoconhecimento tem papel central. Saber o que se busca, identificar os próprios pontos fortes e estar disposta a evoluir continuamente é o que permite fazer escolhas mais conscientes — ainda que incertas. Ao longo da minha trajetória, tive a chance de transitar por diferentes campos: da advocacia tradicional à inovação do financiamento de litígios; da pesquisa acadêmica à sala de aula; do papel de secretária arbitral ao de árbitra e parecerista. Em todos esses espaços, carreguei comigo o mesmo compromisso: seriedade técnica, ética profissional e entrega genuína.
Há um desafio constante em equilibrar todas essas frentes de atuação — especialmente sendo mulher em um meio ainda marcado por desigualdades estruturais. Por isso, acredito que o fortalecimento de redes colaborativas, o incentivo à sororidade e o apoio mútuo entre profissionais são estratégias não apenas desejáveis, mas necessárias para que mais mulheres alcancem espaços de destaque na advocacia, na academia e na arbitragem.
Ter uma banca que leva o meu nome representa, em certa medida, a materialização de muitos desses esforços. Mas mais do que isso: representa a liberdade de construir um projeto profissional que reflita os meus valores, os meus interesses e os meus compromissos com o direito, com a ética e com a sociedade. Cada cliente, cada parecer, cada arbitragem e cada aula são, para mim, oportunidades de exercer uma atuação profissional que busca não apenas resultados, mas também coerência.
Aos que iniciam sua trajetória ou que ainda buscam seu espaço, deixo uma mensagem simples, mas sincera: caminhem com propósito. As lombadas e mudanças de rota virão. Os medos, as dúvidas e os tropeços também. Mas, se houver clareza de princípios e disposição para o trabalho sério, os frutos chegam. Às vezes de forma indireta, às vezes de onde menos se espera — mas chegam.
E quando eles chegarem, que possamos acolhê-los com gratidão, mas também com responsabilidade. Porque construir uma trajetória é mais do que conquistar espaço: é contribuir para um ambiente jurídico mais qualificado, mais ético e mais plural. É ser ponte, não apenas destino. E, acima de tudo, é entender que cada passo, por menor que pareça, compõe o caminho de uma vida profissional com sentido.
Sobre a Autora
Marcela Kohlbach é Especialista em advocacia contenciosa estratégica com experiência na representação de clientes em diversos Tribunais do país, principalmente nas áreas de contencioso civil, comercial e contratual, direito marítimo, direito da construção e arbitragem. Bacharel em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Possui curso de especialização em arbitragem internacional e mediação pelo International Law Instituite(Washington, D.C), além da participação em inúmeros congressos no Brasil. Inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro.
Atua como advogada, árbitra e parecerista em temas de direito processual e arbitragem.