Por Marília Alves de Carvalho e Silva*
Uma newsletter jurídica que nasce com uma coluna sobre a concepção de um ser que virá ao mundo já desafiando a antiga e consolidada presunção de que a mãe é sempre certa (mater semper certa est): assim germina, desde a primeira edição, um salutar convite para analisar a disrupção que a tecnologia vem provocando no direito [1]. É uma satisfação participar deste nascimento simbólico, que logo em sua gênese permite investigar a (ausência de) regulamentação jurídica de uma modalidade de reprodução assistida que já foi objeto de narrativas futuristas e hoje é realidade, a gestação por substituição.
Popularmente conhecida como “barriga de aluguel”, a técnica também é chamada de maternidade por substituição, barriga solidária, cessão temporária do útero, sub-rogação de útero ou “surrogacy”, e consiste em uma forma de reprodução assistida que permite a gestação do embrião no útero de uma mulher que, após o nascimento, entregará a criança para a “mãe intencional”, que é aquela que desejou aquele projeto parental. Precisamente em função de tal bipartição entre a gestante e a mulher que almeja ser a mãe, mencionou-se acima que a presunção de que a mãe é sempre certa já é uma realidade ultrapassada, uma vez que a gestação e o parto não mais traduzem essa certeza.
Esclarecido o conceito, é interessante notar que as polêmicas iniciam na própria nomenclatura, uma vez que a mais difundida traz em si um equívoco ao se referir a prática como “barriga de aluguel”, o que pode suscitar a ideia de que haveria uma contraprestação pecuniária para aquela que gesta, o que não vem sendo admitido no Brasil.
Tal restrição, contudo, não emana de um órgão legitimado a emitir normas com força de lei, mas de Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que editou a primeira normativa pouco depois da exibição da novela homônima a denominação equivocada da prática. A obra ficcional, intitulada “Barriga de Aluguel”, foi veiculada entre 1990 e 1991 [2], e narrava a história de uma personagem que aceitou gestar o filho de um casal em troca de vinte mil dólares, mas se arrependeu depois de um parto complicado.
No ano seguinte, foi publicada a Resolução CFM nº 1.358/1992, posteriormente atualizada pelas Resoluções CFM nº 1.957/2010, nº 2.013/2013, nº 2.121/2015, nº 2.168/2017 nº 2.294/2021, e, por fim, a Resolução CFM nº 2.320, de 1º de setembro de 2022, atualmente em vigor. A vedação ao caráter lucrativo ou comercial está previsto desde a primeira normativa, assim como a necessidade de condição que “impeça ou contraindique a gestação”, e a previsão de que a cedente do útero seja da família de um dos idealizadores do projeto parental, sendo possível a autorização do Conselho Regional de Medicina quando for impossível cumprir tal requisito [3].
Ocorre que, diante da lacuna legislativa sobre o tema, as diretrizes deontológicas do CFM não apenas evidenciam a necessidade de que sejam estabelecidos parâmetros de regramento mínimos, como se transformam em verdadeiras “regras de condutas com reflexos na esfera jurídica daqueles que precisam dessa técnica para realização do planejamento familiar” [4]. Tendo isso em mente, o esforço do referido Conselho é digno de reconhecimento, mas, em virtude da própria natureza da entidade, não possui o condão de conferir segurança jurídica diante de uma realidade que já existe há algumas décadas.
Apesar de no Brasil ainda não se ter verificado nenhuma hipótese de conflito positivo ou negativo de maternidade [5], o Judiciário já foi provocado a decidir sobre questões envolvendo o registro [6]. Em função disso, em 2016 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento nº 52, estando atualmente em vigor o Provimento nº 149 de 30 de agosto de 2023, o qual estabelece em seu artigo 513, §1º que “Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação”.
Além das normativas deontológicas do CFM e do Provimento do CNJ, tramitam mais de vinte Projetos de Lei envolvendo a gestação por substituição. Interessante notar que o primeiro Projeto sobre esse tema, o PL nº 3638 (arquivado), foi apresentado no início de 1993, logo na sequência da exibição da novela e da manifestação do CFM, e o PL n° 787 menciona uma preocupação com as “gestantes que vieram ao Brasil no contexto do conflito armado entre a Ucrânia e a Rússia no ano de 2022” [7], uma vez que o país se consolidou como um polo de destino do que se convencionou chamar de “turismo reprodutivo” [8], o que demonstra mais uma vez a dialeticidade entre fato e norma.
Diante do cenário lacunoso e fractal exposto, mais do que propor uma normatização exauriente, que pode se tornar ultrapassada em função da agilidade no desenvolvimento das tecnologias, o que se pretende é levar luz para a necessidade de uma interpretação da gestação por substituição à luz do direito civil-constitucional, conferindo a máxima primazia a dignidade da pessoa e respeitando o melhor interesse da criança e do adolescente. Sendo assim, se é certo que o gestar de projetos ou crianças costuma vir acompanhado de esperança e entusiasmo, é igualmente inegável que são muitas as incertezas e expectativas que nos impelem a buscar o mínimo de segurança jurídica.
Sobre a Autora
Marília Alves de Carvalho e Silva é Doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direitos Humanos e Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Presidente da Comissão de Promoção de Autocuidado e Qualidade de Vida na Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio de Janeiro (OAB/RJ). Vice-Presidente da Comissão Especial de Advocacia Multiportas da OAB Nacional. Pesquisadora do escritório Gustavo Tepedino Advogados. Professora e Advogada.
Referências
[1] Sobre a relação dialética entre fato e norma, ensina o Professor Gustavo Tepedino: “Em relação aos novos institutos, reclama-se a necessidade de novas classificações, aos moldes das antigas, com leis que as regulamentem, sendo mais que natural, segundo se argumenta, diante do surgimento de figuras jurídicas, que o direito se mobilize para adaptar seus velhos esquemas aos fatos atuais, preservando-se, também sob esse ponto de vista, a tradição”. (TEPEDINO, Gustavo. Marchas e Contramarchas da Constitucionalização do Direito Civil: a Interpretação do Direito Privado à Luz da Constituição da República. (SYN)THESIS, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 15–21, 2012. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/synthesis/article/view/7431. Acesso em: 09.05. 2025).
[2] Embora o ato de uma mulher gestar um filho que será entregue a outra família remeta até a narrativas bíblicas, como a história de Sarai, Abrão e Agar (que não retrata a figura da gestação por substituição como técnica de reprodução assistida, mas demonstra como a cisão entre a gestação e a maternidade possui origens imemoriais), o primeiro precedente não ficcional que ganhou ampla notoriedade ocorreu 1985, nos Estados Unidos da América, e se tornou conhecido como o caso “Baby M”. Neste, houve o pagamento da quantia de dez mil dólares para a senhora Mary Beth Whiteread gestar a bebê planejada pelo casal Willian e Elisabeth Stern. No entanto, depois do nascimento, a gestante (chamada nos EUA de “surrogate”) se recusou a entregar a criança, o que deu início a uma intensa disputa judicial.
[3] Foram citados apenas alguns requisitos previstos na atual normativa em virtude da exiguidade das presentes linhas, que se propõe a incitar a reflexão.
[4] BODIN DE MORAES, Maria Celina; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, famílias e sucessões: diálogos interdisciplinares – 3. ed. Indaituba: Foco, 2023, p. 16.
[5] O conflito positivo de maternidade traduz a hipótese que ocorre quando tanto a mulher que gestou quanto a que intencionou o projeto parental se consideram mães da criança, e o negativo é o exato oposto.
[6] LOPES, Claudia Aparecida da Costa; CARDIN, Valeria Silva Galdino. Barriga de Aluguel e a Proteção do Embrião. Curitiba: Juruá, 2019, p. 46-47
[7] Projeto de Lei nº 787/2022. Disponível em <https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-787-2022>. Acesso em 10 mai. 2025.
[8] SILVA, Marília Alves de Carvalho e. A Gestação por Substituição Transnacional como Embrião de um Sistema Internacional de Proteção da Filiação: uma necessária transposição de fronteiras. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; AZAMBUJA, Luiza (Coords.). Famílias e Suas Várias Dimensões no Direito Privado: estudos sob o enfoque Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2024.