Advocacia corporativa em transformação
A expansão das possibilidades do advogado nas empresas
Por Fernanda Freitas*
Costumo ser reticente a máximas que tentam encaixar pessoas e trajetórias em uma só caixinha — e o mesmo vale para a forma como se entende o papel do profissional jurídico nas empresas de hoje. Não acredito em um modelo único ou ideal, mas em conjuntos de competências e atitudes que, somados à bagagem técnica e comportamental, moldam perfis mais ou menos aderentes a diferentes contextos.
Ainda assim, é impossível ignorar o quanto esse ambiente mudou. Nem é preciso recuar duas ou três décadas. As transformações mais recentes já evidenciam o quanto o advogado corporativo precisou adaptar sua atuação para acompanhar a complexidade crescente dos negócios e a ampliação do papel do jurídico nas empresas.
Muito já se falou sobre a importância de ir além da técnica jurídica e compreender o negócio em profundidade. Mas essa reinvenção da atuação jurídica nas organizações não se apoiou apenas na intenção de inserir advogados nas decisões estratégicas — ela exigiu o desenvolvimento de novas habilidades, novas escutas, novos referenciais.
Todo esse movimento de transformação ampliou as possibilidades de carreira para o advogado corporativo. Ao ganhar relevância em temas que extrapolam o universo jurídico tradicional, esse profissional, em determinados ambientes, passou a transitar por áreas e funções que antes pareciam distantes da sua formação.
Nesse cenário, uma pergunta importante surge: quais papéis hoje se colocam como possíveis para o profissional do Direito que atua nas empresas, caso tenha interesse em explorar caminhos que vão além das fronteiras mais convencionais da advocacia corporativa?
É importante, antes de tudo, reconhecer: interpretar normas com clareza, dominar jurisprudência, saber redigir contratos com precisão e conduzir detidamente os casos contenciosos e regulatórios são fundamentos essenciais — e permanecem como pilares importantes. A atuação tipicamente jurídica continua sendo altamente estratégica, indispensável à governança e à sustentabilidade das organizações. Em muitos contextos, é exatamente esse foco técnico, exercido com excelência e em alinhamento com a dinâmica de cada negócio, que garante segurança, consistência e impacto duradouro na tomada de decisão empresarial.
Como destacou Ben W. Heineman Jr. em sua obra The rise of the general counsel: from law firm lawyer to corporate executive, publicada em 2012, mas ainda muito atual, esse profissional, como líder da área Jurídica, cada vez mais tende a passar a ser um membro central da alta gestão, oferecendo aconselhamento não apenas sobre questões jurídicas e correlatas, mas também contribuindo para moldar discussões e debates sobre temas estratégicos do negócio. O líder jurídico e seu time, atuando na essência de suas atribuições, continuam a ser peças fundamentais.
O que se observa, no entanto, é que o ambiente empresarial atual tem estimulado, em muitas situações, a expansão da atuação do advogado, que passa a circular entre o jurídico e o financeiro, o técnico e o relacional, o regulatório e o estratégico. Essa diversidade de interfaces tem despertado a curiosidade — e, em alguns casos, o desejo — de explorar competências que antes sequer estavam no radar desses profissionais.
Hard skills não jurídicas — como finanças, contabilidade gerencial, análise de dados, fundamentos de ESG, gestão de riscos e governança corporativa — têm ganhado espaço relevante. Dominar esses temas pode ampliar a capacidade do profissional jurídico de contribuir com a estratégia da empresa, antecipar riscos, entender o impacto econômico das decisões e dialogar com áreas diversas com mais profundidade.
Hoje, é comum ver advogados participando de reuniões de orçamento, valuation e auditoria. Mais do que apenas validar juridicamente planos prontos, muitos influenciam decisões desde a concepção dos projetos — ponderando riscos, sugerindo caminhos, alinhando a perspectiva jurídica aos objetivos do negócio.
Esse contexto inevitavelmente abriu novas possibilidades. Cada vez mais, encontramos profissionais de formação jurídica em conselhos de administração, comitês de auditoria e fóruns executivos. Esses espaços exigem mais do que conhecimento técnico: pedem compreensão do contexto organizacional, comunicação clara, sensibilidade política e domínio das dinâmicas de governança. Neles, o advogado frequentemente atua como a voz da coerência e da razoabilidade — alguém capaz de trazer equilíbrio às decisões mais complexas.
Nesse novo desenho, o desenvolvimento de competências comportamentais — as chamadas soft skills — tornou-se essencial. Escuta ativa, empatia, negociação, articulação política e capacidade de liderar projetos e times passaram a ser atributos valorizados. O advogado corporativo tende a ser requerido a atuar com mais transversalidade, em diálogo constante com diferentes áreas e perfis profissionais.
Traduzir temas jurídicos em linguagem acessível, comunicar riscos com clareza e conduzir conversas difíceis com respeito e assertividade fazem diferença na forma como os temas jurídicos são percebidos. Muitas vezes, a efetividade de uma recomendação depende não apenas do seu conteúdo técnico, mas também da forma como é apresentada — e do quanto está conectada ao contexto da organização.
Esse referencial ampliado levou muitas empresas a fortalecer suas áreas jurídicas. O que antes costumava ser conduzido por um único advogado, responsável basicamente por coordenar escritórios de advocacia, passou, em muitos casos, a ser estruturado com times mais robustos, com espaço para tomada de decisão e participação ativa na rotina do negócio.
Como destacado por Shomaila L. Maker em seu detalhado estudo The Role of the Modern General Counsel, os advogados internos vêm desempenhando um papel cada vez mais relevante no tratamento de questões jurídicas complexas — tarefas que, tradicionalmente, eram atribuídas a escritórios de advocacia externos. Isso não significa que a consultoria externa tenha se tornado menos importante ou dispensável, mas sim que houve uma mudança de paradigma, que marca um novo momento para a advocacia no ambiente corporativo.
Com isso, consolidou-se a liderança jurídica dentro das empresas, exigindo de seus profissionais uma combinação entre técnica, aspectos relacionais, emocionais e estratégicos. Aqui, não se trata de saber tudo — mas de saber escutar e fazer os questionamentos que abrem caminho para soluções. Hoje, frequentemente a liderança jurídica conduz projetos de diversas naturezas, implementa mudanças na organização e contribui com decisões operacionais delicadas.
Essa ampliação de escopo naturalmente gerou caminhos que fogem ao tradicional na trajetória de um advogado. Cada vez mais vemos advogados assumindo áreas como gestão de riscos, relações institucionais, ESG e compliance. E há também aqueles que trilham percursos ainda menos óbvios: migram para finanças, tornam-se CFOs — e, em alguns casos, até CEOs.
A intersecção entre o Direito e outras disciplinas, inclusive aquelas tradicionalmente mais ligadas ao comportamento humano, abriu portas inéditas. Passou a ser menos raro encontrarmos advogados liderando frentes de Gente e Gestão, por exemplo. De fato, muitas vezes vê-se que esses profissionais, já integrados ao cenário de transformação atual, conseguem combinar análise jurídica com abordagem estratégica voltada à gestão de pessoas, promovendo ambientes mais coerentes, inclusivos e sustentáveis.
Claro, cada área exige o desenvolvimento de habilidades específicas e, de forma alguma, tem-se a pretensão de dizer que o advogado, sem maior aprofundamento em determinados temas, poderia assumir funções típicas de outras carreiras. Trata-se apenas de reconhecer que muitas das competências desenvolvidas ao longo da trajetória jurídica — como pensamento crítico, responsabilidade, leitura de cenários complexos e capacidade argumentativa — formam uma base sólida para o exercício de novas funções.
Essa mobilidade agrega valor tanto para as empresas quanto para o profissional. Transitar por diferentes áreas fortalece uma abordagem sistêmica e aumenta a capacidade de construir soluções integradas, que dialogam com o todo da organização — não apenas com o seu departamento.
Mas é importante deixar no radar: esse novo cenário também impõe desafios relevantes. Em contextos em que o advogado atua em diversas frentes, pode haver tensão entre o que é juridicamente correto e o que é comercialmente desejável. E é nesses momentos que o compromisso ético se torna ainda mais essencial. Manter a integridade, mesmo diante de pressões, sustenta o valor institucional do trabalho do advogado e contribui para a formação de uma cultura de responsabilidade.
Situações delicadas, como investigações internas ou denúncias sensíveis, também requerem maturidade técnica e clareza de papel. O equilíbrio entre sigilo profissional e dever de reporte nem sempre é simples — e saber conduzir esses contextos com responsabilidade demanda preparo e confiança institucional.
O ambiente corporativo exige cada vez mais dos advogados uma presença estratégica — e, ao mesmo tempo, uma firmeza ética. Profissionais que conheçam o negócio, mas também saibam zelar pela legalidade, pela transparência e pelos valores da empresa. Esses direcionais precisam ser levados em consideração na decisão pela ampliação da atuação do profissional jurídico nas organizações.
O fato é que a advocacia corporativa deixou de ser apenas um espaço de contenção de riscos. Ela se transformou em um campo fértil de geração de valor, cultura, reputação e propósito. O advogado que entende esse novo papel, domina os fundamentos técnicos e atua com integridade pode ampliar seu impacto — seja aprofundando sua trajetória jurídica, seja explorando outras áreas.
O ponto aqui não é gerar ansiedade nem sugerir que todos devam fazer tudo. O convite é mais generoso: reconhecer a pluralidade de caminhos e fortalecer a consciência de que a trajetória de cada um pode (e deve) ser construída com autenticidade, propósito e liberdade. Em um mercado cada vez mais dinâmico e multifacetado, não existe uma única forma de sucesso — e é justamente essa diversidade de percursos que enriquece a prática jurídica e amplia as possibilidades de impacto. Ao invés de seguir fórmulas prontas, o desafio está em identificar o que faz sentido para cada pessoa, respeitando seus interesses, vocações e limites.
Para quem está começando, fica um convite aberto: vá além da técnica e cultive uma curiosidade constante. Construa repertório, desenvolva conexões de qualidade, amplie seus referenciais, mantenha o hábito da leitura de materiais consistentes e incorpore a inovação em seu sentido mais amplo, como parte do seu caminho. Sempre com ética, senso crítico e propósito. E, diante das possibilidades que surgirem, permita-se explorar rumos que enriqueçam sua trajetória.
Sobre a Autora
Fernanda é executiva jurídica com mais de 25 anos de experiência combinada em escritórios de advocacia e empresas no Brasil e no exterior. Formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fez LLM na New York University (NYU) e é mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Fez MBA em Varejo Físico e Online na USP. Atualmente é Vice Presidente Jurídica e de Relações Institucionais da Atvos, alinhando à sua trajetória a missão de transformar o mundo com energia renovável, e é Presidente do Conselho Deliberativo do Pro Criança Cardíaca, associação sem fins econômicos com foco no tratamento de crianças com cardiopatia.
Sobre a Coordenação
Fernanda é executiva jurídica com mais de 25 anos de experiência combinada em escritórios de advocacia e empresas no Brasil e no exterior. Formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fez LLM na New York University (NYU) e é mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Fez MBA em Varejo Físico e Online na USP. Atualmente é Vice Presidente Jurídica e de Relações Institucionais da Atvos, alinhando à sua trajetória a missão de transformar o mundo com energia renovável, e é Presidente do Conselho Deliberativo do Pro Criança Cardíaca, associação sem fins econômicos com foco no tratamento de crianças com cardiopatia.
Carolina Sussekind é executiva jurídica com LL.M em Direito Societário pela NYU (2007). Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001).Tem experiência nas áreas de Direito Societário e de Contratos. Professora da disciplina "Sociedade Anônima e Mercado de Capitais" no LL.M. de Direito Empresarial do IBMEC-RJ (2017).