Por Fernanda David*
Nos últimos anos, o sistema de justiça brasileiro sofreu importantes transformações, grande parte proposta a partir de uma visão econômica do processo. De um modo geral, as novidades – que já não são tão novas assim, especialmente considerando os quase 10 anos de vigência do atual Código de Processo Civil – têm o objetivo de acelerar a tramitação dos processos e valorizar as decisões dos Tribunais, principalmente das Cortes Superiores.
Algumas técnicas processuais deixam clara essa tônica: existindo entendimento vinculante dos Tribunais Superiores, o CPC permite a concessão da tutela provisória de evidência (art. 311, II), a improcedência liminar do pedido (art. 332), o julgamento unipessoal de recursos e conflitos de competência (art. 932 e 955), a oposição de embargos de declaração por omissão (art. 1.022, p. único, I), a exceção à ordem cronológica preferencial de julgamento (art. 12, § 2º, II e III), dentre outros caminhos. Assim, servindo ao objetivo de acelerar o procedimento, o fortalecimento da jurisprudência é um dos principais escopos do sistema de Justiça atual.
A adoção de um regime fundado na valorização dos precedentes promete previsibilidade e segurança às decisões judiciais. Uma vez estabelecidos os entendimentos vinculantes, empresas e cidadãos passam a ter um horizonte mais estável para planejar suas condutas e investimentos.
Nesse cenário, a dispersão jurisprudencial e o consequente risco de decisões divergentes emergem como uma ameaça à efetividade do sistema. De fato, nada obstante o decurso de uma década desde a promulgação do Código e o seu caráter verdadeiramente pedagógico no fomento à utilização das técnicas de fortalecimento da jurisprudência, ainda há, por parte dos operadores do direito, considerável resistência à força dos precedentes judiciais.
Os Tribunais – inclusive os Superiores – ainda enfrentam uma dificuldade de consolidar e de respeitar os seus entendimentos, o que afeta, na outra ponta, a tão esperada previsibilidade e, consequentemente, a segurança jurídica. Aliás, é justamente a falta de segurança jurídica que coloca o Brasil na 80ª posição – de um total de 142 países – no índice do World Justice Project — Rule of Law Index, com uma pontuação de 0,5 (apenas metade do máximo possível)[1].
De início, acredito que valha uma reflexão, ainda que breve, sobre os motivos dessa crise. Em um contexto de infinitos processos e recursos – fruto de uma cultura demandista (valendo lembrar que o Estado é o maior cliente do Poder Judiciário) – , a Justiça brasileira enfrenta uma crise de natureza quantitativa e qualitativa. Em meio a centenas de pilhas de processos, as decisões são, muitas vezes, irrefletidas e mal fundamentadas, não havendo um efetivo senso de unidade e estabilidade da jurisprudência.
Com efeito, embora a jurisprudência estável e respeitada tenda a desestimular o ajuizamento de certas demandas, a reversão desse quadro depende de fatores externos capazes de reduzir o estoque dos litígios que desaguam no Poder Judiciário, merecendo destaque os incentivos ao chamado sistema multiportas de resolução de conflitos. A ideia é simples: fortalecer e desenvolver caminhos alternativos, que sejam adequados à resolução de cada litígio – negociação, mediação, conciliação, arbitragem, dispute board –, fazendo com que o Poder Judiciário seja a “última porta” do sistema.
Enquanto aguardamos a reversão desse quadro, na prática, a constante volatilidade nos entendimentos, com alterações frequentes e inesperadas, representa um desafio considerável para o planejamento empresarial, impactando diretamente as estratégias corporativas e a gestão de riscos. Decisões envolvendo contratos de longo prazo, reorganizações societárias, estratégias tributárias, questões regulatórias ou projetos de investimento podem ser profundamente afetadas por mudanças súbitas de interpretação judicial, criando um ambiente de insegurança para os negócios.
Não se está a defender a inadaptabilidade do Direito às transformações sociais. Se necessário, precedentes devem ser superados mediante uma reavaliação dos fundamentos que levaram à sua formação, em coerência com a realidade jurídica, política, social e econômica da sociedade – mas jamais de forma inesperada e sem relevante razão.
De um lado, a instabilidade em relação às leis e normas reduz a credibilidade do Poder Judiciário e das instituições em geral, tanto no plano interno como externo, tornando o Brasil um país menos atrativo e seguro para investimentos. De outro, há considerável dificuldade na projeção de cenários, o que gera um aumento dos custos da litigância – não apenas em razão do prolongamento das disputas, mas pela dificuldade de antecipar resultados. Enfim, a instabilidade do posicionamento dos Tribunais também viola a isonomia entre os agentes econômicos, gerando distorções competitivas: não raramente empresas expostas ao mesmo risco recebem do Poder Judiciário um tratamento desigual em razão de decisões divergentes.
Diante desse cenário, é impositivo repensar o papel da advocacia empresarial. O advogado que se limita à exposição de respostas pré-estabelecidas não atenderá adequadamente o seu cliente. É preciso ir além, assumindo, ao lado do corpo executivo, uma função estratégica, efetivamente capaz de auxiliar as empresas a navegarem em mares de incerteza. Mais do que buscar a solução “correta”, o advogado precisa estar apto a gerir riscos, antecipar impactos e oferecer caminhos alternativos.
Nesse contexto, algumas práticas tornaram-se indispensáveis à advocacia empresarial. Diante de um problema complexo, e à luz da volatilidade das decisões judiciais, ao advogado compete expor os cenários, apontando as diferentes possibilidades de desfecho e avaliando os riscos associados. Não bastasse, o risco jurídico deve ser traduzido em risco empresarial, com a adequada identificação de seus impactos na atividade empresarial, reputação e competitividade. Ainda, o advogado deve estar atento às mudanças jurisprudenciais, legislativas e regulatórias, antecipando eventuais desdobramentos dessas alterações para o contexto operacional do cliente.
Em complemento, exige-se habilidade técnica na consecução das cláusulas contratuais, que devem estar suficientemente fortalecidas e bem compreendidas para o caso de a relação comercial se transformar em um litígio. Nesse ponto, merece destaque a capacidade de articular a celebração dos chamados negócios jurídicos processuais, que podem ter como objeto, por exemplo, a distribuição antecipada dos custos do processo, a aceleração da citação da parte, a definição dos meios de prova admissíveis, a destinação de um bem à penhora – dentre outras possibilidades, sempre com o objetivo de proporcionar ao cliente uma maior visibilidade e projeção dos riscos envolvidos.
Ao advogado empresarial compete, ainda, analisar, à luz das peculiaridades de cada situação, qual é o meio mais adequado para a resolução de eventual litígio, exigindo-se, para tanto, profundo conhecimento sobre os diversos mecanismos atualmente ofertados pelo sistema de Justiça. Assim, ao invés de simplesmente replicar cláusulas padronizadas de eleição de foro ou arbitragem, o advogado deve buscar o meio que melhor se encaixa no caso concreto, apresentando ao cliente as vantagens e desvantagens de optar, por exemplo, pela inclusão de uma cláusula escalonada de mediação e arbitragem, ou mesmo pela formação de um comitê de especialistas independentes para prevenir e resolver conflitos em determinado projeto (acordo contratual de instituição do chamado dispute board).
Para acompanhar essas alterações, as empresas devem ajustar a relação com departamentos jurídicos e escritórios parceiros. Em vez de esperar respostas únicas e definitivas, é fundamental compreender que a advocacia empresarial, em tempos de precedentes instáveis, trabalha com probabilidades, cenários e graus de risco. Para tanto, os demais departamentos internos precisam enxergar o jurídico como parte da governança estratégica da empresa, adicionando a sua visão ao processo de tomada de decisões econômicas, reputacionais e operacionais.
É inconteste que a instabilidade das decisões judiciais é uma característica incontornável do atual cenário jurídico brasileiro. No entanto, apesar de frustrar a promessa de previsibilidade, não deve ser encarada como paralisante. Com uma advocacia preparada, analítica e orientada ao negócio, é possível transformar a incerteza em oportunidade de diferenciação competitiva.
Em última análise, se a Justiça não garante estabilidade plena, cabe à advocacia empresarial oferecer aos seus clientes as ferramentas para navegar nesse ambiente: cenarização, mitigação de riscos e apoio estratégico. Mais do que buscar eliminar o risco – o que é impossível – trata-se de administrá-lo com inteligência e visão de futuro.
[1] Disponível em: https://worldjusticeproject.org/rule-of-law-index/country/2024/Brazil. Acesso em: 25 de agosto de 2025.
Sobre a Autora
Fernanda David é Mestre em Direito Processual pela UERJ. Membro do Coletivo Processualistas. Sócia de Galdino, Pimenta, Takemi, Ayoub, Salgueiro, Rezende de Almeida Advogados.





