Por Juliana Paiva*
A construção de uma carreira se dá com escolhas, planejamento e um tempero essencial de sorte. Não existem fórmulas prontas. O que faz diferença, muitas vezes, são habilidades que vão além do conhecimento técnico: saber se adaptar, comunicar e construir relações, ter soft skills que se encaixem com os diferentes ambientes de trabalho faz muita diferença.
O advogado que tem boa formação acadêmica dificilmente conseguirá progredir num escritório de advocacia se não souber se expressar, captar clientes, e gerir pessoas, porque junto com a senioridade vem a necessidade de captar ou fidelizar clientes, essenciais à manutenção do escritório. Saber se posicionar e gerir expectativas de clientes, passar segurança e se destacar a ponto de ser escolhido ao invés da concorrência (além de gerir equipes e reter talentos) passa longe de ter um bom conhecimento jurídico.
Por outro lado, em muitas funções (tanto em escritórios quanto empresas), o advogado precisa ter uma boa visão estratégica para fazer diferença. Em certa medida, minha trajetória profissional pode ser um bom exemplo do que cada carreira pode trazer.
Tive muita sorte de começar no jurídico de um banco que tinha preocupação em treinar as pessoas, valorizando tanto o desenvolvimento técnico quanto humano, onde os diretores de todas as áreas participavam, porque sabiam que quanto mais qualificadas as pessoas, mais elas poderiam contribuir nos projetos e proteger o banco.
Aos poucos, fui aprendendo a conectar mundos distintos — o ambiente jurídico e o universo corporativo. Afinal, enquanto na faculdade aprendemos expressões em latim e estudamos livros que nos ensinam um vocabulário muito específico, numa empresa os advogados muitas vezes são a minoria, então muito cedo aprendi que os emails precisam ser objetivos e diretos, senão a mensagem se perde porque nosso interlocutor não tem interesse em palavras difíceis, textos jurídicos densos, menos ainda, discutir conceitos jurídicos somente para trocar ideia.
Por mais que adorasse meu estágio, quando faltava um ano para me formar pedi demissão para trabalhar num escritório com muito prestígio em direito societário, porque queria aumentar o leque, e sabia que se me formasse em banco seria eternamente advogada de banco.
Nesse escritório, tive outra pitada de sorte, desde cedo tive chefes incríveis que não só me treinaram do ponto de vista jurídico, quanto de postura e apresentação. O treinamento jurídico e de gestão (tanto de clientes como de pessoas) é uma preocupação comum em escritórios, afinal o crescimento profissional só é possível com o amadurecimento de todas essas competências. E tem também o fator tempo, que traz aprendizado na gestão de clientes e pessoas só por viver e acompanhar o efeito de decisões, que ora engajam, ora rompem a lealdade que construímos num trabalho.
Estar num ambiente que apostou em mim foi, sem dúvida, determinante. Mas não teria crescido como cresci se não tivesse vocação. Afinal, somente quando estamos trabalhando com algo que realmente gostamos nos dedicamos genuinamente, e não há treinamento que crie esse interesse, depende realmente de a pessoa ter a vocação para aquilo.
Foi meu interesse próprio que me fez ler todos os precedentes de um tema antes de fazer uma defesa, ou ir acompanhar pessoalmente todos os julgamentos que pude, ainda que não fossem casos do escritório. Tudo isso me capacitou de maneira muito sólida, e minha formação jurídica aliada ao meu perfil agregador, de não competir, de dar espaço e ouvir, garantiram meu crescimento profissional. Por isso, pude aproveitar a sorte de estar num super escritório, que me deu espaço e reconhecimento.
Mas nunca me acomodei nem tive medo de arriscar. Por isso, quando veio o convite para trabalhar com uma economista que seria Presidente da Comissão de Valores Mobiliários aceitei de imediato. Aprendi muito, ampliei meu leque, e não poupei esforços em absorver o máximo possível de conhecimento, o que me levou a trabalhar até muito tarde todos os dias.
Quando decidi ser mãe, pedi demissão na CVM, porque também priorizo minha vida pessoal, e sabia que seria muito mais difícil conciliar a maternidade com o cargo que ocupava, que demandava muita dedicação. Voltei então ao escritório, e um par de anos depois tive meu primeiro filho.
No escritório, pude conciliar a maternidade porque tinha mais flexibilidade de horário, com o que conciliei bem os momentos dedicados aos filhos e ao trabalho, mas isso tudo não teria sido possível se não trabalhasse com pessoas que não se incomodavam com meus horários, priorizando minhas entregas e se não tivesse me disposto a trabalhar em horários pouco usuais.
A rotina em escritório sempre foi muito intensa e desafiadora, e por muito tempo apaixonante. Mas, com o passar dos anos, cresceu uma vontade de fazer parte não só daquela preocupação ou caso que o cliente trazia para o escritório, mas participar de todos os seus processos e governança interna.
Foi por isso que, mesmo sócia do escritório e realizada profissionalmente, quando uma gestora me procurou pedindo indicação para advogado interno, eu me candidatei. Sete anos depois dessa decisão, e já na segunda gestora, não tenho nenhum arrependimento. Tanto na primeira quanto na segunda gestora encontrei ambientes incríveis, que me acolheram e me valorizaram.
Ser jurídico in house envolve desafios diferentes. Diria que migrar para empresa demanda ao menos três premissas essenciais: primeiro, é preciso identificar empresas que valorizem pessoas, inclusive de áreas de apoio como é o jurídico; segundo, é importante identificar empresas que tenham bons valores e cultura pois isto naturalmente leva a uma preocupação em manter boas práticas; e, por fim, o advogado não pode ter apego ao “glamour” que sócio de escritório tem, porque em geral o advogado de um escritório é mais respeitado que o advogado interno (muitas vezes por puro preconceito, mas isso fica para outro artigo).
O meu amadurecimento profissional permitiu que, ao migrar para empresa, pudesse assumir um papel de um jurídico estratégico, que traz desafios muito específicos.
Isso porque, se num escritório o advogado está no centro da prestação do serviço oferecido, numa empresa há necessariamente outras áreas que são mais voltadas ao desenvolvimento do negócio. Mas um bom jurídico deve sempre ter uma proximidade grande com as áreas core da empresa, para que possa viabilizar os negócios da empresa e administrar corretamente riscos (e assim evitar que sejam seguidos caminhos que possam trazer exposições indevidas).
Mas para ser verdadeiramente estratégico, o jurídico precisa ser visto como um aliado, e não como um validador burocrático. Ter um jurídico estratégico quer dizer ter uma estrutura interna onde não só há rotinas eficientes para cumprir as leis, mas também oportunidade de apontar e dimensionar riscos, porque não tem nada pior do que se assumir um risco sem saber.
Um bom jurídico interno cumpre um papel que os escritórios dificilmente conseguem cumprir, porque existem processos, controles internos e decisões rotineiras que possuem uma dinâmica que dificulta o envolvimento de advogado externo.
Mas para fazer diferença, o jurídico precisa ser envolvido não para uma validação final, mas desde o começo de um projeto relevante, caso contrário a função do advogado é residual.
Afinal, não é possível para um advogado aconselhar e avaliar riscos se ele não teve oportunidade de entender as preocupações por traz de um projeto, o contexto que justifica opções que foram tomadas e, principalmente, se ele não foi envolvido num momento em que ainda há espaço para melhor alinhar estruturas e documentos.
E, nessa função, tão importante quanto dominar o direito, é saber se posicionar de maneira agregadora e estratégica, especialmente porque não se está num ambiente onde o direito é a atividade fim, de modo que se o advogado não souber ser um bom interlocutor interno, sofrerá resistências que podem inviabilizar o seu papel estratégico.
Diferentemente de um ambiente de escritório, onde os advogados “falam a mesma língua” e são igualmente estudiosos do direito, numa empresa, o advogado precisa se fazer entender com pessoas que não são advogadas, não conhecem (nem querem conhecer!) termos em latim, e, não raro, não se dispõem a ler “textões”.
Por isso, se o advogado não souber se posicionar de maneira clara e objetiva, sem provocar a ira de outros executivos, sem constranger quem pensa diferente, sem usar termos que só advogados entendem, ele não terá capacidade de transmitir a mensagem corretamente.
E se quem fala não é ouvido ou respeitado, invariavelmente esse jurídico não cumprirá o papel de ser verdadeiramente estratégico e aliado ao negócio.
Mas interlocução sem conteúdo não traz também nenhum ganho. Nesse quesito, não tem milagre, um jurídico verdadeiramente estratégico depende de uma formação sólida que só vem com muitos e muitos anos de dedicação e experiência.
Isso porque as análises jurídicas envolvem muitas variáveis diferentes, que levam a conclusões específicas para cada caso. Basta lembrar que, logo no começo da faculdade, uma das primeiras constatações é a de que para poucas perguntas jurídicas existem respostas objetivas. Ao contrário, muitas das perguntas feitas em aula são respondidas com um angustiante “depende”, porque a intenção das partes, o contexto e o objetivo almejado alteram as conclusões.
Na prática cotidiana, essas situações se multiplicam consideravelmente, de modo que muitas das relações comerciais e discussões nascem justamente de conceitos abertos, que dependem de interpretações, diretamente ligadas a uma análise factual que altera o resultado de uma análise jurídica.
Por exemplo, numa negociação contratual, se uma cláusula não refletir a intenção das partes, ela pode ser interpretada para além do texto em si, para levar em conta essa intenção. Da mesma forma, as partes podem acordar contratualmente obrigações e responsabilidades que vão além daquelas expressas em normas, que serão tão oponíveis e válidas entre as partes quanto as próprias normas o são.
Ainda, o contexto específico em que atos são praticados pode ser suficiente para alterar radicalmente uma conclusão. Basta lembrar do conceito de simulação, onde os atos praticados podem até ser legais se considerados isoladamente, mas se conjuntamente provocam um resultado indevido, e não houver uma fundamentação legítima para a prática de cada ato, a validade individual deles é desconsiderada, e eles passam a ser vistos como tendo sido praticados unicamente para se alcançar aquele objetivo não permitido em lei.
Não por outra razão, aliás, nos quase 20 anos que trabalhei em escritório fazendo consultas e defesas em processos administrativos não teve uma única defesa igual à outra. Por mais que processos envolvendo deveres fiduciários de acionistas e administradores fossem uma constante, assim como processos questionando potenciais insider tradings e outras práticas não equitativas, absolutamente nenhuma defesa era idêntica à outra.
Usando os processos de insider trading como exemplo, enquanto numa defesa foi relevante discutir se havia de fato uma informação privilegiada não divulgada, noutra era relevante discutir o fundamento da negociação, e noutra, ainda, a intenção do acusado e a fundamentação econômica de suas decisões. As variáveis são infinitas, sempre ditadas e limitadas pela análise factual de cada caso.
Por isso, num mercado regulado como é o mercado financeiro, os desafios são enormes, pois há muitos princípios e obrigações previstos nas regras que dependem de interpretações para serem colocadas em prática corretamente.
Saber evitar ou se proteger de situações que exponham indevidamente um gestor depende de, no dia a dia, ter capacidade de identificar práticas ou ideias (estas, sempre à frente da regulação), que não atendem às premissas de um mercado regulado ou que não estão formalizando corretamente responsabilidades.
Dessa forma, por mais que hoje não faça mais defesas e consultas, diariamente aplico toda essa minha bagagem para identificar e provocar discussões e avaliações de diferentes situações para evitar que se assumam riscos regulatórios muitas vezes desnecessários e evitáveis.
Por exemplo, um dia um gestor me envolveu numa operação onde se acordou comprar as sobras de um aumento de capital de uma companhia aberta. De imediato, concordamos que mencionadas ações deveriam ser inseridas em lista de restrição interna, evitando assim que fossem negociadas no mercado.
No dia em que o fato relevante anunciando o aumento de capital e acordo com as sobras foi publicado, o gestor me procurou perguntando se a restrição seria retirada, afinal o fato relevante já fora divulgado, mas expliquei a ele que não, que precisaríamos manter a restrição até o dia da aquisição efetiva, pois qualquer negociação até esse dia poderia ser vista como realizada para influenciar o preço da ação, afinal já tínhamos acordado em comprar a ação num preço e dia previamente definidos.
Nesse caso, a divulgação do fato relevante eliminava a discussão de insider, mas não potencial discussão de manipulação, pois se fora acordado comprar um ativo num dia e preço previamente definidos, qualquer negociação no mercado realizada por quem se obrigou a comprar sobras poderia ser vista como influência do preço provocada a favor desse investidor, caso a cotação da ação no mercado fosse superior ao preço de aquisição nas sobras do aumento de capital. Ao contrário, se o preço naturalmente convergisse para trazer esse lucro adicional, nada poderia ser questionado. O gestor não só concordou com minha avaliação como alertou todos os que estavam na mesma situação da importância de não haver negociações.
Se o gestor não tivesse a preocupação em agir corretamente, não teria me procurado. E se eu não tivesse experiência para fazer uma avaliação de riscos mais completa, não teria capacidade de me posicionar como me posicionei, com o que teria sido assumido um risco que no fim do dia o gestor não queria assumir, mas não teria sido alertado dele.
Esse é o maior desafio de um jurídico interno de gestora, os documentos para formalizar operações geralmente são feitos por intermediários e pelas contrapartes, de modo que a rigor uma gestora não precisa ter jurídico interno para formalizar decisões de investimento. Mas se o jurídico interno for muito júnior, ele não terá capacidade de fazer uma boa avaliação de riscos, para além do que um documento visa formalizar.
No fim do dia, um jurídico estratégico é tão interessante quanto trabalhar em escritório, os dois são igualmente desafiadores. Mas tanto num quanto noutro o crescimento depende de ir além do conhecimento jurídico, e ter soft skills para saber se posicionar, para ser ouvido e respeitado.
E, da mesma maneira que o escritório me preparou para a empresa em vários aspectos, uma empresa pode preparar um advogado para um escritório. Os caminhos não são necessariamente excludentes, mas complementares.
Em retrospectiva, tudo se encaixou perfeitamente para eu ocupar a função que ocupo hoje. Foi fácil? Certamente não. Foram muitos obstáculos, não só os trazidos pelo cargo em si, mas também por ser mulher e mãe, mas sempre encontrei espaço e apoio.
Cada decisão, cada desafio superado, me ensinou que não existem respostas prontas, apenas caminhos a serem descobertos com coragem, escuta e dedicação. No final das contas, construir uma carreira é, antes de tudo, permitir-se evoluir junto com as pessoas e contextos que cruzam nossa jornada.
Sobre a Autora
Juliana Paiva é Sócia e Advogada Sênior da G5 Partners, atuando no Jurídico e Compliance com foco no Multi-Family Office. Advogada com mais de 25 anos de experiência em mercado de capitais, regulação e práticas de mercado. Atuou no Banco Brascan e foi sócia do Barbosa, Müssnich & Aragão, com ampla atuação em processos consultivos e sancionadores envolvendo gestoras, investidores, companhias abertas e administradores. Entre 2007 e 2010, foi Chefe de Gabinete da Presidência da CVM, participando ativamente de debates regulatórios e institucionais, especialmente no período pós-crise do subprime. De 2018 a 2024, liderou o jurídico da gestora JGP. Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes (RJ), é Vice-Presidente da AMEC, membro da Comissão de Normas da B3 e participa de comissões da OAB-RJ e fóruns da Anbima.
Excelente texto e reflexões sobre carreira. De fato, a advocacia nos permite transitar entre diferentes habilidades, e para isso tambpem temos que nos permitir ampliar essa atuação e a forma como nos enxergamos para além das hard skills tradicionais. Parabéns pela trajetória!