Conflitos em Transformação: o Direito na Era das Múltiplas Portas
Oferecer múltiplas “portas” — ou métodos adequados à natureza de cada disputa — amplia o verdadeiro acesso à justiça
Por Andrea Maia*
Em 1976, durante a Global Pound Conference — um evento histórico que reuniu juristas, magistrados e acadêmicos para repensar o sistema de justiça — Frank Sander apresentou uma ideia que mudaria para sempre o modo como lidamos com disputas: a proposta do Tribunal Multiportas (Multi-Door Courthouse)¹. Sua visão era simples e poderosa: em vez de destinar todos os conflitos ao Judiciário tradicional, deveríamos oferecer múltiplas “portas” — ou métodos adequados à natureza de cada disputa — ampliando, assim, o verdadeiro acesso à justiça. Em outras palavras, a partir dos tribunais, era preciso oferecer “centros abrangentes de justiça” (Hernandez Crespo, Sander, 2012. p.32)1.
A metáfora da multiporta inaugurou um novo paradigma no campo jurídico, ao reconhecer que diferentes conflitos exigem diferentes respostas. Questões familiares, comerciais, trabalhistas ou de vizinhança dificilmente encontrarão soluções eficazes dentro do mesmo modelo adversarial. Sander propôs que, antes de serem judicializadas, as demandas passassem por uma triagem — a chamada screening function — capaz de indicar o método mais apropriado: mediação, conciliação, arbitragem, negociação ou processo judicial tradicional.
Décadas depois, essa visão foi adaptada ao mundo digital por Colin Rule, referência global em *Online Dispute Resolution (ODR, ou Resolução On-line de Disputas)2. Com o avanço da tecnologia, as portas deixaram de ser poucas e fixas: hoje vivemos na era das portas exponenciais, na qual plataformas automatizadas, inteligência artificial, triagens digitais e sistemas híbridos permitem soluções mais acessíveis, rápidas, personalizadas e escaláveis. A metáfora ganha nova vida na era digital, incorporando algoritmos, chatbots, automações e interfaces amigáveis que ajudam a conectar pessoas às soluções adequadas com mais agilidade e menos burocracia.
Nesse contexto, mediação e arbitragem ocupam lugar central. Já não são apenas “alternativas” ao Judiciário — tornaram-se pilares de uma nova cultura jurídica, que valoriza a escuta, o diálogo, a autonomia das partes e a construção conjunta de soluções. Um novo pacto de confiança está sendo tecido entre cidadãos, empresas e instituições, no qual os conflitos deixam de ser batalhas a serem vencidas e passam a ser oportunidades de transformação de relações.
No Brasil, esse movimento ganhou respaldo institucional com a promulgação da Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3, que instituiu a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. Essa normativa reconheceu oficialmente que nem todos os conflitos devem ser resolvidos pelo Judiciário tradicional, incentivando a adoção de métodos autocompositivos em todo o país. Desde então, os tribunais passaram a implementar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), promovendo uma cultura de pacificação social, com foco em mediação, conciliação e escuta qualificada.
A Resolução foi complementada pela Emenda nº 1/2013 e pela Emenda nº 2/2016, que expandiram o alcance das práticas restaurativas, fortaleceram a formação de mediadores e aprimoraram a estrutura dos CEJUSCs4. Além disso, as Resoluções se articulam diretamente com a Lei nº 13.140/2015 (Lei da Mediação)5 e com o Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015)6, que introduziram dispositivos específicos de estímulo à autocomposição.
Essa mudança de paradigma se alinha ao que juristas como Rodrigo Fux e Renata Gil vêm denominando como a Quarta Onda do Acesso à Justiça — uma ampliação da teoria das ondas proposta por Mauro Cappelletti7. Diferente das ondas anteriores (acesso a grupos vulneráveis, assistência jurídica e reformas estruturais), essa nova etapa é marcada pela personalização do acesso à justiça, por meio da interoperabilidade de dados, tecnologias emergentes e soluções orientadas por inteligência artificial8.
A multiplicidade de portas representa não apenas mais opções, mas uma nova mentalidade jurídica: o acesso efetivo à justiça não se restringe à presença física em tribunais, mas à capacidade de encontrar soluções adequadas, tempestivas, viáveis e humanizadas. Mediação, arbitragem, negociação, ODRs — todos esses mecanismos integram um ecossistema de resolução de disputas que valoriza a autonomia das partes e o protagonismo na gestão de seus próprios conflitos.
É nesse espírito que nasce esta coluna. Um espaço dedicado a explorar as inovações, os desafios e as possibilidades que surgem quando olhamos para a mediação e a arbitragem com lentes contemporâneas. Aqui, falaremos de tecnologia, mas também de escuta. De algoritmos, mas também de confiança. De plataformas digitais, mas sobretudo de pessoas.
Assumo a curadoria desta coluna com o compromisso de fomentar reflexões e provocar diálogos qualificados. Atuo há 15 anos na mediação empresarial, lado a lado de profissionais de arbitragem, na formação de especialistas e no desenvolvimento de soluções tecnológicas aplicadas à resolução de conflitos. Acredito que inovação no Direito não se resume a ferramentas digitais — trata-se, sobretudo, de repensar mentalidades, processos e a forma como construímos soluções jurídicas mais humanas e eficazes.
Nos próximos meses, vamos discutir temas como ODR (em português, Resolução On-line de Disputas), cultura de pacificação, desenho de sistemas de gestão de conflitos, mediação, arbitragem, entre outros. Também trarei vozes inspiradoras para dividir esse espaço comigo — autores convidados que estão na vanguarda dessas transformações e que, como eu, acreditam no poder de um Direito mais colaborativo e conectado com seu tempo.
Se você também acredita que o Direito pode ser mais eficiente, inclusivo e humano — esta coluna é para você.
Vamos juntos abrir novas portas!
SANDER, F; CRESPO, Mariana Hernandez. Diálogo entre os professors Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In: ALMEIDA, R; ALMEIDA, T; CRESPO, M Hernandez (org.) Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o Sistema de solução e conflitos no Brasil. RJ: Ed. FGV, 2012
SANDER, Frank E. A. “Varieties of Dispute Processing”. In: The Pound Conference: Perspectives on Justice in the Future, 1979.
Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Institui a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=2573.
CNJ. Emenda nº 2/2016 à Resolução 125/2010. Inclui práticas restaurativas e amplia a atuação dos CEJUSCs.
Brasil. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação como meio de solução de conflitos e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm.
Brasil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Art. 3º, §§ 2º e 3º, e artigos 165 a 175 tratam da autocomposição.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.
ARAÚJO, Valter Shuenquener de; GABRIEL, Anderson de Paiva; PORTO, F Ribeiro. Justiça 4.0: uma nova onda de acesso à Justiça. Publicado em 5/7/2022. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/artigo-justica-4-0-uma-nova-onda-de-acesso-a-justica/ https://www.okbar.org/barjournal/aug2019/obj9006rule/ > Acesso em: abr.2025.
Sobre a Autora
Andrea Maia é Fundadora da Mediar360 - Plataforma de Resolução de Disputas .Vice Presidente de Mediação do CBMA – Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Vice Presidente de Mediação da do CIAM - Centro Internacional de Arbitraje de Madrid. Membro do Conselho de Administração da AB2L – Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs. Colaboradora do Kluwer Mediation Blog.