Por Carolina Uzeda*
Ainda é relativamente comum que determinadas empresas enxerguem o contencioso apenas como um centro de custos, uma obrigação inescapável, sem perceber o potencial transformador que ele carrega. Essa leitura restritiva reduz a advocacia contenciosa a uma atuação meramente reativa, voltada a mitigar riscos e administrar crises. No entanto, a verdadeira força do contencioso estratégico não reside apenas na forma de conduzir a defesa, mas, sobretudo, na seleção das teses jurídicas que serão levadas a juízo. É nessa escolha que se define, em larga medida, o impacto que o contencioso poderá exercer sobre os resultados empresariais.
A escolha de teses não é um ato trivial. Trata-se de uma decisão estratégica que projeta efeitos em diversas dimensões: financeira, reputacional, regulatória e social. Cada tese representa não apenas um conjunto de argumentos jurídicos, mas também um posicionamento institucional da empresa. A depender da escolha, transmite-se ao mercado, a reguladores, a clientes e a investidores uma mensagem clara acerca da identidade da companhia e do papel que ela pretende desempenhar em seu setor de atuação.
É verdade que, em uma perspectiva imediata, litigar costuma ser visto como meio de reduzir perdas ou evitar condenações mais gravosas. Esse é o plano mais superficial de análise, em que o processo é compreendido como passivo inevitável e a escolha da tese limita-se a buscar a solução menos onerosa. Contudo, ao se ampliar o horizonte de observação, percebe-se que a definição de quais teses serão defendidas e como serão defendidas pode transformar profundamente a posição da empresa, deslocando-a de mera participante reativa em litígios para protagonista na construção de precedentes, na conformação de práticas concorrenciais e até mesmo na indução de transformações regulatórias.
Assumir ou rejeitar uma tese não é apenas uma decisão técnica, mas também estratégica. Sustentar determinada posição pode significar abrir mão de ganhos imediatos em favor da consolidação de jurisprudência favorável no futuro, da influência em políticas públicas ou do fortalecimento da reputação perante atores relevantes do mercado. De modo inverso, a opção por uma tese mais conservadora pode ser igualmente estratégica, ao resguardar capital reputacional, evitar desgaste público ou preservar relações institucionais que se revelam essenciais no longo prazo. Em qualquer hipótese, o valor está em compreender que a seleção de teses é um exercício de ponderação, no qual a empresa escolhe não apenas o que discutir, mas também em que momento, em que ambiente e com qual propósito.
Essa noção de ambiente é especialmente relevante. A companhia pode decidir sustentar sua tese de maneira individual, assumindo protagonismo e sinalizando firmeza institucional. Pode optar por uma via setorial, articulando-se com outras empresas do mesmo segmento, compartilhando custos e potencializando legitimidade. Pode recorrer a canais institucionalizados, como associações de classe, capazes de conferir densidade e alcance às teses. Ou, ainda, pode atuar como amicus curiae em processos paradigmáticos, influenciando de forma indireta, mas decisiva, discussões estruturantes. Cada escolha projeta efeitos distintos em termos de custo, legitimidade, visibilidade e impacto, devendo ser incorporada ao planejamento estratégico global.
É inegável que a consistência técnica da tese é requisito indispensável, mas não se trata de critério suficiente. A decisão deve incorporar múltiplas variáveis: impacto financeiro direto, reflexos reputacionais perante clientes e investidores, repercussão no setor de atuação e mensagem transmitida em termos de governança e responsabilidade corporativa. Uma empresa madura compreende que a ousadia em determinadas teses pode representar menos uma aposta em resultados imediatos e mais um investimento de longo prazo, destinado a consolidar posição de liderança no mercado, fortalecer sua narrativa institucional e reafirmar seus valores fundamentais.
Nesse contexto, o papel do advogado ganha contornos diferentes. Ele não atua apenas como defensor processual, mas como verdadeiro curador de teses. Deve conhecer em profundidade a empresa, internalizar seus valores e refletir sua identidade no modo de litigar. Isso porque, em muitos casos, o advogado é a face visível da companhia. Um desalinhamento entre discurso institucional e postura contenciosa pode acarretar efeitos reputacionais adversos de grande monta. Tanto o mercado quanto o Judiciário (ou outros centros de poder) percebem inconsistências e dissonâncias, e a credibilidade construída ao longo de anos pode ser comprometida em razão de escolhas jurídicas incoerentes.
Assumir teses estratégicas é também reconhecer que o contencioso não se limita ao espaço de defesa, podendo converter-se em arena de protagonismo. Empresas que decidem enfrentar questões relevantes – sejam de natureza tributária, regulatória, trabalhista ou contratual – passam a exercer liderança que transcende seus próprios litígios, influenciando práticas setoriais e contribuindo para a consolidação de padrões de mercado. Os resultados, em muitos casos, não se refletem em ganhos imediatos, mas em valor simbólico acumulado: fortalecimento da imagem institucional, engajamento de investidores e maior aproximação com centros decisórios. Litigar estrategicamente, nesse sentido, é investir em capital reputacional.
Não basta, contudo, escolher a tese. É igualmente determinante identificar o momento e o procedimento mais adequados para sustentá-la. O sistema processual brasileiro oferece múltiplos instrumentos capazes de irradiar efeitos para além do caso concreto: recursos repetitivos, incidentes de resolução de demandas repetitivas, ações coletivas ou mesmo a atuação em mandados de segurança de maior alcance. Até mesmo um processo de pequena monta pode, dependendo do ambiente em que se desenvolve, projetar repercussões normativas inesperadas. Reduzir a estratégia contenciosa a cálculos de custo individual do processo é ignorar essa potencialidade.
Essa mudança de perspectiva demanda também novas métricas de avaliação. O tradicional cálculo do “quanto se ganhou ou deixou de perder” já não é suficiente para dimensionar o valor da atuação jurídica. É preciso traduzir os resultados da seleção de teses em indicadores empresariais tangíveis, tais como a redução de riscos futuros em razão da formação de precedentes favoráveis, a eficiência no tempo de resolução de disputas, os reflexos reputacionais de uma postura coerente e os impactos regulatórios decorrentes de decisões judiciais paradigmáticas. Quando traduzidos para a linguagem empresarial, esses indicadores revelam o contencioso como alavanca de resultados, e não como mera caixa-preta de custos.
Além disso, é importante reconhecer que a escolha de teses jurídicas pode projetar efeitos que ultrapassam os limites da própria companhia. Sustentabilidade, diversidade, inovação e responsabilidade corporativa são exemplos de agendas que, quando transformadas em teses jurídicas, não apenas defendem interesses empresariais, mas também contribuem para moldar padrões éticos e sociais mais inclusivos. Empresas que assumem posições corajosas nesses litígios colaboram para sedimentar novas referências, tanto no campo jurídico quanto no tecido social.
O contencioso, sob essa ótica, deixa de ser passivo inevitável para converter-se em investimento estratégico. O diferencial não reside em litigar por litigar, mas em escolher com precisão as teses que serão sustentadas. Cada decisão nesse sentido projeta efeitos econômicos, reputacionais, regulatórios e sociais. Ao selecionar teses de forma consciente e alinhada à cultura organizacional e aos objetivos empresariais de longo prazo, a área jurídica deixa de ser apenas gestora de riscos para tornar-se produtora de valor. O advogado empresarial, nesse cenário, assume novo papel: não apenas defensor em litígios, mas estrategista, parceiro de negócios e agente ativo de transformação.
Sobre a Autora
Carolina Uzeda é Doutora em Direito pela UFPR. Advogada e parecerista. Sócia em Arruda Alvim, Aragão & Lins Advogados. E-mail: carolinauzeda@aalvim.com.br