Por Rissely Rocio da Rocha*
Proponho uma reflexão sobre os desafios jurídicos contemporâneos envolvendo o direito à morte digna e a insegurança dos familiares ao aceitarem a decisão de quem tanto amam. A dúvida entre o certo e errado, o tabu da morte e a sensação de caminhar para o fim são fatores que dificultam o diálogo. Com o avanço dos cuidados paliativos e a abordagem humanizada do fim da vida pela medicina, cabe aos profissionais jurídicos o trabalho de incentivar as famílias a terem as chamadas “conversas difíceis” para que as tomadas de decisão no momento de incapacidade sejam assertivas e isentas de culpa.
Em entrevista para o podcast Estranho Familiar conduzido pela psicanalista Vera Iconelli, a modelo Fernanda Lima compartilhou as dúvidas que ela e o irmão enfrentaram ao terem que decidir assuntos pessoais relacionados a sua mãe, como por exemplo o tipo de funeral que ela gostaria de receber, se cremação ou o velório tradicional. Dúvidas que a fez refletir sobre o fato de nunca ter conversado com a mãe, verdadeira parte interessada, sobre tal tema. Fernanda não é a única a passar por isso. Diariamente, temos notícia de pessoas que enfrentam os mesmos dilemas, e compartilham que se tivessem conversado sobre tais questões, passariam por esses momentos de decisão de forma mais leve. O planejamento não diminui o luto, mas, de alguma forma torna o processo mais digno e ameniza a dor de quem tem que decidir sobre questões sensíveis, tais como a continuidade ou não de um tratamento.
Estamos vivenciando o aumento de uma preocupação com o planejamento patrimonial pós-mortem, decorrente principalmente da reforma tributária. Contudo, não podemos descuidar do planejamento relacionado a questões extrapatrimoniais que envolvem a morte e todas as questões existenciais relacionadas à pessoa humana, que podem ser organizadas e tratadas por meio de testamento ou codicilos, conforme previsão legal disposta no artigo 1.857, § 2º, do Código Civil1. Destaco que se trata de um direito personalíssimo.
Embora não exista no direito brasileiro instrumento jurídico específico regulamentado por lei para lidar com assuntos sobre a continuidade ou não de um tratamento, a doutrina prevê tal possibilidade. Citamos Conrado Paulino da Rosa que em seu livro aborda o testamento vital ou diretivas antecipadas de vontade como um documento “que tem por finalidade estabelecer disposições sobre cuidado, tratamentos e procedimentos de saúde nos quais o agente deseja se submeter, que consiste numa antecipação de vontade, já que tem por escopo produzir efeitos quando aquele que dispôs não mais puder exprimir de forma válida sua vontade”2
Para embasar juridicamente tal possibilidade, além da doutrina, destacamos o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, que trata da dignidade da pessoa humana, o artigo 5º, inciso II, também da Constituição da República que trata da autonomia privada e a Resolução CFM nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina que regulamenta as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
Possibilita-se, com isso, o direito de morrer sem impor a quem fica sofrimento desnecessário. Isso porque, quem sofrerá as consequências de uma decisão a ser tomada no futuro, antecipadamente, já deixou por escrito o que representa a sua vontade, de, por exemplo, realizar ou não, todos os tratamentos possíveis para determinada enfermidade ou se prefere cuidados paliativos. As diretivas antecipadas de vontade, apesar de serem chamadas, também, de testamento vital, não exigem as regras, formalidades e princípios do testamento, devendo apenas se atestar a plena capacidade civil do declarante no momento do ato.
Esclareço que cuidados paliativos não se confundem com a eutanásia, procedimento vedado no Brasil. O primeiro refere-se ao cuidado do paciente em fase terminal, de modo a permitir que ele viva o processo da morte natural sem intervenções que causariam apenas sofrimento, enquanto o segundo consiste na antecipação da morte. Ainda assim, persistem controvérsias envolvendo o cumprimento dos termos das diretivas antecipadas de vontade na medicina e a possibilidade do médico recusar atos que sejam contrários à sua consciência (art. 28 do Código de Ética Médica Brasileiro)3 .
Outro instrumento que auxilia a tomada de decisão para momentos de vulnerabilidade futura é a autocuratela ou escolha antecipada de um curador, que nas palavras de Nelson Rosenvald4:
“é um negócio jurídico de eficácia sustida, através do qual a pessoa que se encontra na plenitude de sua integridade psíquica promove a sua autonomia de forma prospectiva, planejando a sua eventual curatela, nas dimensões patrimonial e existencial, a fim de que no período de impossibilidade de autogoverno existam condições financeiras adequadas para a execução de suas deliberações prévias sobre o cuidado que receberá e a sua compatibilização com as suas crenças, valores e afetos”.
Em artigo publicado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, Roselvald explica que a autocuratela pode ser utilizada, por exemplo, para casos de diagnósticos de doença degenerativa como Alzheimer, em que num primeiro momento, enquanto ainda há capacidade civil se utiliza da tomada de decisão apoiada5, prevendo para o futuro que o apoiador seja a pessoa que assumirá o encargo de curador quando não for mais possível o exercício dos atos da vida civil pelo curatelado.
O Conselho Federal de Medicina na Resolução n. 1.995/2012 em seu art. 1º prevê as diretivas antecipadas de vontade “como conjunto de desejo, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos, que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. A resolução é aplicada às diretivas antecipadas de vontade e a escolha antecipada de curador.
Em junho de 2025, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM protocolou um pedido de regulamentação da Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade e Escolha Antecipada de Curador no Âmbito do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial na Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça. A regulamentação, se aprovada, colocará fim à insegurança jurídica e garantirá os efeitos e cumprimento das disposições da última vontade da pessoa em situação de vulnerabilidade assegurando o direito a uma morte digna.
Assim concluo que para o sucesso do planejamento pessoal é indispensável a construção dos dois instrumentos de forma conjunta, pois um complementa o outro, as diretivas antecipadas de vontade irão dispor sobre o cuidado e a autocuratela sobre a administração patrimonial, encargos a serem exercidos por pessoa de confiança, de modo a não delegar decisões íntimas, pessoais e importantes às pessoas listadas na legislação civil, as quais muitas das vezes não possuem nenhum vínculo próximo ou de afeto com a pessoa em situação de vulnerabilidade, mas tão somente um vínculo biológico.
O planejamento prévio envolve diálogo, acolhimento, promove segurança jurídica, evita conflitos familiares e decisões contrárias à vontade do indivíduo em situação de vulnerabilidade. Uma atuação jurídica preventiva, portanto, é capaz de acolher a complexidade das relações e o direito fundamental de se viver e de morrer com dignidade.
Sobre a Autora
Rissely Rocio da Rocha é Advogada Colaborativa. Especialista em Famílias e Sucessões. Associada ao Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas (IBPC). Associada à Associação Brasileira de Advogados. Capacitada em Mediação Sistêmica Familiar pelo Meeting Sistêmico. Membro da Comissão de Planejamento Patrimonial e Sucessório da Associação Brasileira de Advogados.
Referências
São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas tenha se limitado.
Paulino da Rosa, Conrado. Planejamento Sucessório. Teoria e Prática. São Paulo. 3ª Edição. Editora JusPodvim. 2024
Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade.
Rosenvald, Nelson. Confins da Autocuratela. IBDFAM. 2017. https://ibdfam.org.br/artigos/1213/Os+confins+da+autocuratela
Art. 1783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.