Governança qualificada: compromissos compartilhados e visão transversal
A base para o tratamento estratégico dos temas materiais
Por Henrique Fernandes Marcondes e Gustavo Motta de Figueiredo*
Atualmente, é inconcebível uma estrutura de governança corporativa que não esteja preparada para lidar com temas como diversidade, devida diligência na cadeia de fornecimento, pegada de carbono, inovação, segurança psicológica e riscos emergentes.
Como discutido no artigo anterior desta coluna, a sociedade, investidores e órgãos reguladores esperam mais das empresas e, em resposta, a estrutura organizacional precisa se tornar um verdadeiro espaço de escuta ativa, construção coletiva e tomada de decisão responsável, para que haja coerência legal e social entre o que uma organização entrega e as expectativas em jogo.
Ao mesmo tempo, em cenários de queda no desempenho financeiro, quando preservar o caixa se torna imperativo, são justamente as empresas com uma gestão genuinamente comprometida com seus stakeholders que conseguem acessar mecanismos de maior segurança e resiliência. Esse alinhamento decorre da adoção consistente de práticas ESG — capazes de fortalecer vínculos, sustentar a confiança e orientar decisões mesmo nos contextos mais adversos.
A literatura tem discutido a materialidade da divulgação ESG em relação ao desempenho financeiro, ao comportamento do mercado, à gestão de riscos e ao gerenciamento de resultados. As evidências apontam que as classificações ESG representam uma fonte de vantagem competitiva, ao reduzirem riscos, funcionarem como ferramenta quantitativa para mensurar a satisfação dos stakeholders e contribuírem para a atração de capital.
A tal materialidade é um conceito com origem na contabilidade. Significa, grosso modo, a característica de uma informação que, se omitida ou errada, pode influenciar a decisão de usuários. O termo foi importado e adaptado para os relatórios de sustentabilidade nos anos 90 pela Global Reporting Initiative (GRI). No âmbito do GRI, materialidade diz respeito aos impactos econômicos, ambientais e sociais da empresa — sob a ótica do que seus stakeholders, e não apenas os acionistas, desejam e precisam saber.
Em contextos regulatórios mais recentes, como os adotados pela União Europeia e pelo IFRS, o conceito de dupla materialidade ganha destaque, ao integrar tanto os impactos da organização no ambiente e na sociedade (materialidade de impacto), quanto os efeitos desses fatores sobre o desempenho financeiro da empresa (materialidade financeira).
Os ratings ESG avaliam a materialidade da divulgação ESG medindo o desempenho das empresas em relação a práticas ambientais, sociais e de governança. Agências especializadas como MSCI, Sustainalytics e EcoVadis realizam essas avaliações, com base em metodologias próprias, para classificar as empresas de acordo com seu desempenho ESG. Ao se adaptar às crescentes exigências em sustentabilidade, as companhias não apenas cumprem requisitos regulatórios, mas também ampliam suas oportunidades de crescimento e fortalecem sua reputação no mercado.
Por exemplo, a BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, reafirmou em seu ESG Integration Statement que considera fatores ESG fundamentais para a análise de risco. Seu relatório de stewardship, de 2024, destaca que companhias com governança sólida em sustentabilidade têm melhor performance no longo prazo.
No Brasil, o Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa de Valores de São Paulo (ISE B3) consolidou-se como benchmark. Empresas como Itaú, TIM e Renner lideram rankings com base em gestão ESG. Segundo a B3, companhias no ISE apresentam melhor retorno ajustado ao risco e maior estabilidade operacional.
Nesse cenário, conselhos e comitês ganham protagonismo: além de supervisionar, devem comprometer-se com o conteúdo e a substância dos temas. Seus membros não devem se limitar à validação de materiais preparados pela administração; devem ser provocados, desafiados e responsabilizados pela construção das soluções.
Sociedades empresárias que adotam uma governança verdadeiramente responsiva, com estruturas claras e articuladas, conseguem gerar fluidez na comunicação entre diferentes níveis hierárquicos. O recomendável é que essa agenda seja cada vez mais transversal e possa permear toda tomada de decisão da organização.
Essa fluidez não acontece por acaso: exige escuta estruturada, rotinas periódicas de alinhamento, plataformas acessíveis de reporte e, acima de tudo, relações de confiança.
Na prática, isso significa conectar as áreas por meio de grupos interfuncionais, garantir que comitês temáticos tenham voz ativa e criar fóruns em que diretoria, operação e conselho discutam os mesmos dados e se escutem com intenção genuína.
É nesse ambiente que os temas materiais ganham força. Quando há clareza sobre papéis, quando os responsáveis são empoderados com recursos e quando se cria espaço para o diálogo real, o que antes era tratado como “agenda paralela” passa a ser parte essencial da estratégia.
A cultura da empresa absorve esse compromisso, e as pessoas deixam de ver assuntos como diversidade, ética ou clima como obrigações para enxergá-los como parte do jeito de ser da organização.
Nesta temática de gestão de temas materiais, são bem-vindos os conceitos e aplicações do compliance transformativo, que, embora não seja recente, apresenta vasto campo para evolução nas organizações.
Inspirado na regulação responsiva e nas abordagens modernas de cultura organizacional, o compliance transformativo visa não só evitar riscos, mas transformar o comportamento organizacional com base em valores, gerando engajamento, legitimidade e resiliência, ou seja, algo cada vez mais exigido pelas novas regulações, pelos mercados contemporâneos e pela sociedade.
A menção neste artigo visa reforçar a necessidade de metodologias que catalisem a cultura ética, integrando valores, comportamentos e propósito à estratégia empresarial. Essa abordagem estimula transparência e autonomia com responsabilidade. É preciso fazer do ESG um modelo mental e considerar profundamente as relações de causalidade entre ação, resultado e impacto.
As organizações líderes em boas práticas vêm implementando ações como: (i) canais de escuta com resposta estruturada, aplicáveis a colaboradores e terceiros; (ii) inclusão do tema “integridade” nas metas e OKRs das lideranças; (iii) definição de políticas, critérios e frameworks para análise preventiva de riscos reputacionais.
Importa lembrar que estruturas de governança surgiram como resposta a escândalos e à necessidade de proteção do capital. Hoje, evoluíram para plataformas de criação de valor e sustentabilidade institucional.
Conselhos eficazes não apenas supervisionam: ajudam a construir cultura e liderança. São provocadores de boas perguntas, e não apenas homologadores de respostas.
Questões como diversidade, transição climática, clima organizacional, ética e riscos cibernéticos deixaram de ser acessórios. Tornaram-se temas materiais, com impacto direto sobre a geração de valor. A capacidade de lidar com esses fatores é cada vez mais medida por investidores e stakeholders.
Conselhos devem evoluir para modelos deliberativos e responsivos. Isso requer: (i) conhecimento técnico sobre temas materiais; (ii) diversidade de perfis e experiências; (iii) processos de escuta e accountability; e (iv) integração entre riscos e estratégia.
Estamos diante de um novo paradigma. As organizações precisam de estruturas que transcendam a formalidade e se tornem espaços de escuta, aprendizado e transformação, se quiserem permanecer relevantes.
Profissionais de Governança, Riscos, Compliance e Jurídico devem protagonizar a construção de modelos que articulem propósito, resultado e integridade. A evolução regulatória está em curso. O mercado já se movimenta. E a história será escrita por quem estiver preparado para responder à altura os desafios do nosso tempo.
Sobre os Autores
Henrique Fernandes Marcondes é Executivo Jurídico, Formado em Direito pela UFRJ, com intercâmbio na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, Portugal. Pós-graduado em direito imobiliário pela PUC-RJ. Trajetória profissional desenvolvida em departamentos jurídicos de empresas dos setores de shopping center e retail. Atua como conselheiro de startups.
Gustavo Motta de Figueiredo é Head de GRC na Ferroport, responsável pela estruturação e fortalecimento dos pilares de Governança, Riscos, Compliance e Auditoria Interna. Com sólida trajetória em empresas de capital aberto e ambientes regulados, atua como agente estratégico na consolidação de práticas éticas, gestão de riscos e alinhamento entre controle interno e criação de valor. Com mais de 15 anos de experiência, ocupou posições de liderança na ALLOS, BR Malls, OSX Brasil e PwC. Administrador e contador, com MBA pela Coimbra Business School, é integrante do MasterMind da LEC – Legal, Ethics & Compliance – e membro ativo do IIA Brasil.
Sobre a Coordenação
Henrique Marcondes é Executivo Jurídico. Formado em Direito pela UFRJ, com intercâmbio na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, Portugal. Pós-graduado em direito imobiliário pela PUC-RJ. Trajetória profissional desenvolvida em departamentos jurídicos de empresas dos setores de shopping center e retail. Atua como conselheiro de startups.
Karina D’Ornelas é Advogada. Bacharel em Direito pela UFRJ. Pós-graduada em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Especializações em Direito Ambiental e Direito Empresarial pela FGV Direito Rio. Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUC-RS. Mestre em História da Arte na Escola de Belas Artes da UFRJ. Consultora Jurídica Sênior em sustentabilidade corporativa, integra o Comitê de Fornecedores de empresa de capital aberto com representação internacional, bem como o Comitê de Ética do Pró-criança Cardíaca. Diretora Técnica da Fundação Hermann Hering, professora, palestrante e mentora para advogadas negras da Associação Black Sisters in Law, também é coautora dos livros "Jurídico 5.0 & Operações Exponenciais” (2024) e “Direito Ambiental Empresarial: desafios, estratégias e inovação sustentável” (2025).