Impactos da Reforma Trabalhista: O Novo Jogo das Relações de Trabalho no Brasil
Por Priscila Mathias Fichtner*
A Reforma Trabalhista de 2017, impulsionada pela Lei nº 13.467/2017, marcou a transição de um modelo rígido e bastante protecionista, baseado na legislação pós-revolução industrial de 1943, para um cenário mais flexível, dinâmico, aberto ao diálogo e conectado com as demandas do século XXI. O objetivo? Equilibrar a proteção ao trabalhador com a necessidade de competitividade das empresas em um mundo globalizado, digital e em constante transformação e diminuir a insegurança jurídica na área trabalhista, que tanto majorou o conhecido “risco Brasil”.
A nova legislação somada a decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria laboral e à nova dinâmica dos precedentes do Tribunal Superior do Trabalho (TST) vem redesenhando o dia a dia de quem atua na gestão interna e jurídica das relações trabalhistas. Temas como negociação coletiva, terceirização e teletrabalhopassaram a ser revisitados. Outros, como compliance, governança coorporativa, práticas de combate a todo e qualquer tipo de assédio e discriminação no ambiente de trabalho, passaram a ser desenvolvidos e exigidos. Todas essas alterações trouxeram grandes desafios para um ambiente laboral cada vez mais digital e diverso.
Flexibilidade e Negociação como diferenciais
Durante muito tempo o Direito do Trabalho girou em torno da clássica relação de subordinação e da proteção paternalista ao empregado hipossuficiente. Atualmente, o cenário mudou. A Reforma Trabalhista passou a regulamentar novas formas de contratação, como o trabalho intermitente, o home office e o trabalho por plataformas digitais. O resultado é um ambiente onde a negociação – tanto coletiva quanto individual – ganha protagonismo.
O STF, ao fixar o Tema 1046, que declarou a constitucionalidade das normas coletivasque pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, reiterou norma legal de que o negociado vale mais que o legislado, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis. Trouxe, dessa forma, mais autonomia para empresas e sindicatos, mas também maior responsabilidade e transparência nas negociações. Temas que eram reiteradamente rechaçados nos Tribunais do Trabalho, tais como elastecimento da jornada nos turnos ininterruptos de revezamento, pactuação sobre grau de insalubridade passaram a ser validados e atualmente estão afetados para que o Tribunal Superior do Trabalho reveja o seu entendimento, pacificando-o perante as demais Cortes Trabalhistas.
Outro ponto de virada também proveniente de decisões do STF é o reconhecimento da constitucionalidade da terceirização irrestrita (ADPF 324 e RE 958.252). Atualmente, considera-se válida a terceirização de qualquer etapa da cadeia produtiva, inclusive a atividade-fim, algo impensável até pouco tempo atrás. Mais recentemente, o mesmo STF determinou, no julgamento do ARE 153.2603, a suspensão nacional de todos os processos que versam sobre a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, a chamada “pejotização”, o que pode envolver diversos tipos de relações e atividades. A licitude da contratação do trabalhador autônomo, o ônus da prova relacionado à alegação de fraude em contrato cível e a competência da Justiça do Trabalho para julgar tais demandas será decidida por ocasião do julgamento do Tema 1389, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
Tais decisões ampliaram o leque de possibilidades para o desenho de novas relações de trabalho, diversas da relação de emprego, mas também trouxeram novos desafios em termos de compliance, fiscalização e gestão de terceiros, bem como demandam uma revisão das minutas contratuais.
Essa flexibilização traz, em contrapartida, a necessidade de due diligence constante em fornecedores e parceiros, garantindo regularidade fiscal, ambiental e trabalhista para evitar surpresas desagradáveis.
A ampliação da terceirização também trouxe à tona a importância de práticas ESG (Environmental, Social and Governance) na gestão de fornecedores.
A fiscalização eficiente dos fornecedores deve contemplar não só o cumprimento das obrigações legais, mas também o respeito à diversidade, à inclusão, à saúde mental e ao combate ao assédio e à discriminação no ambiente de trabalho, reforçando o compromisso com o cumprimento dos direitos humanos em todas as relações de trabalho.
Com tantas mudanças, o departamento jurídico das empresas passou a desenvolver papel protagonista de verdadeiro arquiteto da governança trabalhista. O monitoramento em tempo real da jurisprudência, o uso de soluções tecnológicas e a parceria com escritórios especializados tornaram-se essenciais para antecipar riscos, ajustar contratos, rever políticas internas, desenhar planos de benefícios, pacotes de remuneração, inclusive com possibilidade de implementação via norma coletiva.
A área de recursos humanos também ganhou protagonismo estratégico. Não basta mais cuidar da folha de pagamento e dos benefícios: é preciso participar ativamente da negociação coletiva, implementar canais de denúncia e investir em treinamentos sobre temas sensíveis como jornada, assédio e diversidade. A integração entre jurídico e RH é o segredo para construir ambientes de trabalho mais seguros, inclusivos e alinhados com as melhores práticas de compliance.
Teletrabalho e Economia Digital: Novos Desafios, Novas Oportunidades
A pandemia COVID-19 acelerou a adoção do teletrabalho, e a então recente legislação trazida pela reforma trabalhista precisou ser readequada. Algumas matérias, especialmente relacionadas a controle de jornada e pagamento de horas extras, ainda são objeto de discussão, razão pela qual muitas empresas optaram por regulamentar o teletrabalho em acordo coletivo.
A comunicação entre a Inspeção do Trabalho e empregadores também foi digitalizada. A instituição do Domicílio Eletrônico Trabalhista (DET), desde 2024, trouxe celeridade e criou obrigações de consultas regulares ao sistema de comunicação eletrônica pelas empresas. No âmbito da Justiça do Trabalho, verificou-se um aumento crescente dos processos 100% digitais, o que confere facilidade na produção da prova e agilidade no julgamento do processo, mas que requer uma análise crítica sobre essa escolha. As provas digitais, como meio de aplicação do princípio pela busca da verdade real, passaram a ter maior aceitação pelo Judiciário Trabalhista.
Paralelamente, o trabalho por plataformas digitais – como aplicativos de delivery e transporte – desafia as fronteiras entre autonomia e subordinação. Parte do TST adota tese da existência da “subordinação algorítmica”, mas o STF deve decidir sobre a existência ou não de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital, quando do julgamento do Tema 1291.
Esse novo cenário é campo fértil para que as empresas criem ou revejam políticas de ressarcimento de despesas, cláusulas de confidencialidade e adoção de mecanismos de desconexão.
Saúde Mental, Inclusão e Sustentabilidade: novo caminhar das Relações de Trabalho
A preocupação com saúde mental, inclusão, sustentabilidade e combate ao assédio ganhou força e é o “novo normal” das relações de trabalho. A Lei 14.457/2022 (CIPA +A), por exemplo, estabelece medidas de combate ao assédio sexual e outras formas de violência contra a mulher. A Portaria GM/MS 1999/2023 indica os fatores psicossociais na lista de doenças relacionadas ao trabalho, redimensionando-a. A Lei 14.831/2024 instituiu o certificado da empresa promotora da saúde mental e, mais recentemente, a Portaria MTE nº 1.419/2024 deu nova redação à NR-1 para incluir os fatores psicossociais como fator de risco no ambiente de trabalho. Esse arcabouço legal reforçou a preocupação na preservação e cuidado com a saúde mental, bem como naprevenção e no combate ao assédio e discriminação no ambiente de trabalho. Nesse particular, vale citar também a Lei nº 14.611/2023, que passou a exigir das empresas com mais de 100 (cem) empregados a apresentação do Relatório de Transparência e Igualdade Salarial, a fim de promover a equidade de gênero.
Para além das obrigações legais, empresas que investem em políticas de diversidade, inclusão e combate ao assédio não só reduzem riscos trabalhistas, mas também melhoram índices de engajamento, diminuem o turnover e aumentam seu valor de mercado. A fiscalização pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), cada vez mais sofisticada com o uso de big data e cruzamento de informações do eSocial, exige respostas rápidas e proativas.
Até maio de 2026, as empresas precisam ter mapeado os riscos psicossociais, tarefa importante para a proteção dos empregados e da empresa, seja pela subjetividade que o tema desafia ou, ainda, pelo fato de que a sociedade está adoecendo, o que espelha o número crescente de patologias psicológicas (transtorno de ansiedade, depressão, entre outros), que não necessariamente possuem vinculação com o trabalho.
A cultura de compliance trabalhista deixou de ser um diferencial e passou a ser requisito básico para as empresas. A adoção de políticas internas alinhadas à jurisprudência, a capacitação contínua dos líderes e a implementação de programas de mediação interna e negociação assistida são estratégias que podem reduzir significativamente a litigiosidade trabalhista.
O Futuro do Direito do Trabalho: Dinamismo, Cuidado, Diálogo eSustentabilidade
A Reforma Trabalhista e seus desdobramentos inauguraram um ciclo de revisão permanente no Direito do Trabalho brasileiro. O STF, ao validar a prevalência do negociado sobre o legislado e ampliar a terceirização e reafirmar a validação de novas formas de relações de trabalho, diversas da de emprego, deslocou o eixo de proteção para cláusulas de reserva dos direitos absolutamente indisponíveis, logo inafastáveis. Tal situação passou a exigir dos operadores do direito um olhar atento para a proporcionalidade e a razoabilidade.
O TST, por sua vez, vem consolidando institucionalmente uma cultura de precedentes que contribui para a uniformização de entendimentos e aumento da segurança jurídica. Temas muito sensíveis foram afetados e estão na pauta de julgamento, o que enseja atenção máxima para os operadores do direito trabalhista. A ascensão das novas formas de trabalho pode gerar oportunidades para modelos contratuais flexíveis, mas também riscos que, se mal administrados, podem resultar em passivos vultosos e danos à reputação.
O sucesso das empresas no ambiente pós-Reforma Trabalhista dependerá da capacidade de atuar de forma integrada, conectando jurídico, profissionais de RH, tecnologia da informação e governança. A adoção de práticas robustas de compliance, ancoradas em análise de precedentes do STF e do TST, é o caminho para reduzir incertezas e alinhar estratégias de negócios aos preceitos constitucionais de valorização do trabalho humano.
O Direito do Trabalho brasileiro atualmente está mais dinâmico, aberto ao diálogo e orientado para resultados sustentáveis. Quem investir em prevenção de riscos, capacitação interdisciplinar e negociações coletivas estará melhor posicionado para competir em um mercado que exige flexibilidade, responsabilidade social e respeito à dignidade dos trabalhadores.
Como destacado no “Tudo é Rio”, de autoria da Carla Madeira: “Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida.”
A Reforma Trabalhista inicialmente apareceu como uma “guilhotina” perante os tribunais trabalhistas, mas – no nosso sentir - ela inaugurou um caminho de evolução constante, onde o aprendizado, a adaptação, o cuidado com o outro e o diálogo são as chaves para o sucesso. O futuro pertence a quem souber desenvolver essas habilidades, com inteligência, sensibilidade e visão de longo prazo.
Sobre a Autora
Priscila Mathias Fichtner é mestre e doutora em direito civil, possuindo enorme experiência tanto na área cível, quanto na trabalhista. Advogada recomendada pela Revista Análise Advocacia-500 como referência e que atua na coordenação técnica da área trabalhista e da célula de Causas Especiais e Consultoria. Juntou-se ao Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados em 2012 na fusão com seu antigo escritório, passando a sócia de capital desde então.