Por Andreia Saad*
Na peça Henrique VI, parte 2, de William Shakespeare, o personagem Dick, o Açougueiro, diz em certo momento: “A primeira coisa que faremos é matar todos os advogados”. Naquele contexto, a frase expressava o intuito vil do personagem: instaurar o caos através da derrubada da ordem legal e intelectual – representada, na alegoria, justamente pelos advogados.
A referência lisonjeira à profissão não sobreviveu aos mais de 400 anos que se seguiram à obra shakespeariana. Hoje, a convocação homicida de Dick ainda é repetida - mas como piada para menosprezar advogados e reafirmar o tradicional estereótipo do conselheiro tedioso, caro e aproveitador. A banda americana Eagles, na música Get Over It, de 1994, parafraseia William “Billy” Shakespeare e comprova, em rima e verso, a triste e costumeira visão sobre nossa classe: “Quanto mais eu penso sobre isso, Billy estava certo/ Vamos matar todos os advogados/ Mate-os hoje à noite”.
E bem, se advogados hoje são alvo destas insinuações jocosas, o que dizer de nós, advogados internos? Além dos adjetivos pouco elogiosos mencionados, ganhamos outros tantos mais: criadores de problemas, guardiões da burocracia, freios de mão.
Com mais de 10 anos trabalhando em departamentos jurídicos, digo com toda a convicção, sem medo de soar parcial: esta visão é preconceituosa e injusta. O dia a dia e meu constante contato com pares em outras empresas me mostram que advogados internos têm tido um papel cada vez mais fundamental e estratégico, permitindo que empresas não apenas operem dentro da ética e da legalidade, mas também sigam prosperando em mercados competitivos e ambientes regulatórios cada vez mais complexos.
Dito isso, um pouco de autocrítica nos cai bem. Ainda que hoje tenhamos o papel de aliados do negócio na busca por mais eficiência e menos risco, nossa linguagem e postura muitas vezes advogam – com o perdão do trocadilho – contra nós mesmos.
Na forma, falta objetividade, sobram textos prolixos, ordens indiretas ou o pecado supremo: expressões em latim. Não é que nos falte senso estético ou domínio do vernáculo. Acontece que, por muitos anos, aprendemos que texto jurídico bom é texto jurídico longo. Que hipérboles disfarçam o argumento falho. E que pontos de exclamação sensibilizam juízes. A empatia, por outro lado, não nos foi ensinada no campo da linguagem. Redigimos mensagens e pareceres como se o destinatário fosse outro advogado - jamais o cliente.
A situação não melhora quando tratamos do conteúdo. É um fato: ainda temos enorme dificuldade em assumir posições e dar recomendações claras. É comum vermos pareceres que apenas enumeram os riscos de cada caminho possível, sem expressar qualquer opinião. A opinião, quando eventualmente surge, é conservadora. É como se sempre prevíssemos o pior, sem coragem de apontar o melhor. Nada mais que uma manobra (ainda que, por vezes, inconsciente) para proteger a própria reputação - se algo der errado, o advogado conservador poderá sempre dizer: “eu avisei".
Mas será mesmo que nossa reputação fica a salvo quando nos comportamos dessa forma? A pesquisa Enterprise Legal Reputation da Onit (nov/2022), com 4.000 colaboradores de diversas empresas, revelou que, a despeito do crescente reconhecimento quanto à sua importância, advogados internos ainda são vistos como pouco transparentes e inflexíveis – consequências diretas da combinação entre, justamente, linguagem falha na forma e excesso de conservadorismo no conteúdo. O resultado? 73% dos entrevistados não os consideram como bons parceiros de negócios e 67% admitem costumeiramente ignorar o jurídico, mesmo sabendo que a atitude contraria políticas e normas corporativas.
Departamentos jurídicos têm uma função muito clara dentro das empresas: garantir que elas atuem em conformidade com as leis. Do ponto de vista prático, essa função se desdobra em duas frentes: (i) facilitação das operações (executada por meio da elaboração e negociação de contratos, apoio a auditorias e atuação em litígios, por exemplo); e (ii) prevenção de riscos (executada por meio de consultoria jurídica, monitoramento do ambiente legal e regulatório, estruturação de políticas de controle interno, treinamentos, entre outros).
Quando o jurídico é envolvido em momento tardio ou é sequer consultado, perdem todos, portanto. A área de negócios perde o apoio operacional que poderia ter sido fundamental para dar mais eficiência e robustez aos seus projetos; a empresa passa a correr riscos relevantes que poderiam ter sido antevistos e mitigados se advogados tivessem sido envolvidos desde o planejamento e início das novas iniciativas; o departamento jurídico se distancia ainda mais dos executivos, retroalimentando a dificuldade de alinhamento original que causou seu bypass.
A questão que se coloca aqui é: o que fazer para mudar esse cenário? Há formas de mudar a percepção das áreas de negócio a respeito de seus departamentos jurídicos, criando uma relação de mais confiança e efetiva parceria que permita que os executivos sigam buscando oportunidades sem correr riscos jurídicos desnecessários? A resposta é positiva, e abaixo vão algumas das mais essenciais para este propósito:
Linguagem: adotar uma linguagem clara, que vá direto ao ponto e entregue a recomendação jurídica solicitada sem rodeios é fundamental para inspirar credibilidade e iniciar a aproximação com as áreas de negócio. Neste contexto, o formato visual pode ajudar - e muito: tabelas com a comparação entre custos e benefícios de cada caminho possível, fluxogramas que ilustrem as etapas de cada processo e sumários gráficos resumindo principais riscos e próximos passos recomendados, por exemplo, comunicam o que é necessário com objetividade, facilitando a compreensão de temas jurídicos complexos, viabilizando o engajamento dos executivos e otimizando o processo de tomada de decisão.
Conhecimento do negócio: compreender a fundo como a empresa gera valor — seus produtos ou serviços, diferenciais competitivos, público-alvo e metas estratégicas — é tão essencial quanto dominar as leis. Advogados que conhecem o negócio conseguem antecipar riscos ligados ao modelo da empresa e sugerir soluções legais alinhadas à estratégia corporativa, gerando mais confiança e proximidade com os executivos.
Foco em eficiência: a criação de uma governança operacional, o investimento em ferramentas de automatização, o compromisso com prazos de atendimento pré-estabelecidos e a adoção de métricas claras de performance não só melhoram o atendimento interno, mas também elevam nossa reputação corporativa. Ao demonstrar comprometimento com a eficiência, o departamento jurídico passa a ser visto como uma área estruturada, confiável e capaz de operar com a mesma produtividade e qualidade que qualquer outra área de negócios.
Proximidade cotidiana com cliente: a construção de confiança e a aproximação com as áreas de negócios também passa pela criação de uma presença fluida do jurídico junto aos executivos e suas equipes. A organização de encontros informais, almoços e check-ins, a disponibilização de caixas de sugestões, o envio de newsletters jurídicas e a realização de treinamentos leves e lúdicos criam um ambiente de abertura e ajudam a naturalizar a participação do jurídico no dia a dia de todos.
Solicitação de feedbacks periódicos: a busca frequente pela opinião das áreas parceiras ainda não é prática comum nos departamentos jurídicos. E, no entanto, essa é uma medida que pode ser de enorme valia para advogados internos. Além de beneficiar o departamento com reflexões e críticas que podem ajuda-lo a aprimorar seus processos, forma comunicação e postura, o pedido de feedback revela deferência pela opinião do cliente, reforçando a imagem do jurídico como uma área aberta ao diálogo, fortalecendo a confiança mútua e a aproximação estratégica.
Credibilidade é construção. O diagnóstico de que áreas de negócio ainda nos veem frequentemente como um entrave é um primeiro passo importante na direção da mudança, mas é preciso propósito firme, envolvimento profundo e compromisso de constância para que uma transformação cultural de fato ocorra e consigamos uma maior fluidez nas relações entre advogados internos, executivos e suas equipes.
A busca dos advogados internos por clareza, assertividade, presença e diálogo deve ser diária, e alinhada entre todos desde a entrada de cada novo integrante no departamento jurídico. Ter áreas de negócio procurando espontaneamente o jurídico para apoio nos seus novos projetos será a melhor métrica a indicar que a transformação já começou e que, afinal, o departamento está tendo seu merecido reconhecimento, não mais como entrave e sim como um fundamental gerador de valor para o negócio.
Sobre a Autora
Andreia Saad é advogada especializada em direito concorrencial, tecnologia & privacidade. Atua há mais de 20 anos no setor privado, tendo passado pelos maiores escritórios de advocacia do país e atuado como international associate no Cleary Gotlieb Steen and Hamilton LLP em Washington, DC. É Diretora Jurídica e DPO do Grupo Globo. Bacharel em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e LL.M. em Trade Regulation – Antitrust & Competition Law pela New York University School of Law (NYU).
Sobre a Coordenação
Fernanda é executiva jurídica com mais de 25 anos de experiência combinada em escritórios de advocacia e empresas no Brasil e no exterior. Formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fez LLM na New York University (NYU) e é mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Fez MBA em Varejo Físico e Online na USP. Atualmente é Vice Presidente Jurídica e de Relações Institucionais da Atvos, alinhando à sua trajetória a missão de transformar o mundo com energia renovável, e é Presidente do Conselho Deliberativo do Pro Criança Cardíaca, associação sem fins econômicos com foco no tratamento de crianças com cardiopatia.
Carolina Sussekind é executiva jurídica com LL.M em Direito Societário pela NYU (2007). Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001).Tem experiência nas áreas de Direito Societário e de Contratos. Professora da disciplina "Sociedade Anônima e Mercado de Capitais" no LL.M. de Direito Empresarial do IBMEC-RJ (2017).