Por Michele Lyra*
Resumo
O presente artigo analisa o fenômeno da litigância abusiva e seus impactos sobre o sistema de justiça brasileiro, destacando a necessidade de uma releitura do princípio do acesso à justiça à luz da sustentabilidade institucional e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A partir do contexto de hiperjudicialização e uso abusivo da máquina judicial, propõe-se uma nova onda renovatória no campo do direito processual, voltada à racionalização da demanda, à valorização da boa-fé processual, à promoção dos meios adequados de resolução de conflitos e ao uso da tecnologia como ferramenta de contenção do litígio abusivo.
Palavras-chave
Litigância abusiva; acesso à justiça; abuso de direito; sustentabilidade judicial; ODS 16.
A litigância abusiva tem se tornado um fenômeno crescente e preocupante no Brasil, representando um verdadeiro paradoxo do acesso à justiça e um grande desafio para os operadores do Direito. Este fenômeno compromete a eficiência do sistema judicial e impõe à coletividade o risco de esgotamento do bem comum, a justiça.
A busca pela justiça é um objetivo universal e central para os operadores do Direito, variando conforme o tempo e a cultura. A análise das sociedades contemporâneas revela constantes modificações na postura do Estado para adequar a prestação jurisdicional às necessidades dos cidadãos, impulsionando a evolução dinâmica do Direito. O poder jurisdicional deve refletir os anseios da sociedade globalizada, marcada pela redução das barreiras políticas, avanço tecnológico e complexidade das relações jurídicas.
Durante o século XX, o “Movimento Universal de Acesso à Justiça”, estruturado em ondas processuais por Cappelletti e Garth no “Projeto Florença”, desafiou a qualidade e eficiência do Poder Judiciário, influenciando reformas legislativas e propondo soluções para superar obstáculos econômicos, organizacionais e processuais. A universalização do acesso à justiça, com a incorporação de conquistas como a gratuidade de justiça e as ações coletivas, trouxe à tona também o abuso do direito de litigar, que impede a prestação jurisdicional adequada e efetiva.
A Constituição Federal garante o acesso à justiça como direito fundamental, mas é necessário buscar meios adequados de solução de disputas e coibir o exercício abusivo do direito de litigar, evitando a litigância abusiva, que compromete a celeridade e a qualidade da prestação jurisdicional. O modelo atual de acesso à justiça acabou por permitir um acesso indiscriminado, muitas vezes gratuito, ao Judiciário, sem representar um efetivo acesso à justiça. Esse acesso indiscriminado incentiva o exercício abusivo do direito de litigar, contrariando os princípios éticos e favorecendo a litigância abusiva.
Desde o Projeto Florença, muitos avanços foram feitos, mas também houve retrocessos. Em 2019, Bryant Garth lançou o Global Access to Justice Project, propondo quatro novas ondas renovatórias: ética nas profissões jurídicas e acesso dos advogados à justiça; internacionalização da proteção dos direitos humanos; novas tecnologias para aprimorar o acesso à justiça; e desigualdade de gênero e raça nos sistemas de justiça.
O abuso do direito de ação e de defesa, na forma de ações ou recursos desnecessários, sem fundamento e com fins ilícitos, entra na contramão dos movimentos de acesso à justiça, utilizando-se dos benefícios das primeiras ondas, como gratuidade da justiça e ações coletivas, para fins diversos dos originalmente propostos.
Trata-se de um uso estratégico e abusivo da máquina judicial, com finalidades que não se alinham ao interesse legítimo de resolver um litígio, mas sim de causar dano à parte adversa, atrasar decisões, pressionar economicamente empresas ou instituições, prejudicar concorrentes no campo empresarial (Sham litigation) e, até mesmo, limitar a liberdade de expressão de cidadãos (Slapp - Strategic Lawsuit Against Public Participation – Litigation).
Apenas a título exemplificativo, estima-se que, atualmente, 30% dos casos envolvendo Direito do Consumidor ou Direito Civil no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais representem litígios abusivos, com prejuízos avaliados aproximadamente em R$ 10 (dez) bilhões por ano. [1]
A Agenda 2030 da ONU, ratificada pelo Brasil, reafirma o compromisso com o acesso efetivo à justiça, destacando o objetivo de promover sociedades pacíficas e inclusivas. O Poder Judiciário brasileiro foi pioneiro na institucionalização da Agenda 2030, reforçando a importância de desenvolver um sistema sustentável e pacificador, com incentivos à racionalização da prestação jurisdicional, desjudicialização, boa-fé processual e ética dos atores do processo.
As metas do Poder Judiciário, conforme a estratégia definida para o período 2021-2026, incluem a desjudicialização e a resolução consensual de conflitos, com foco no combate à litigância abusiva, com apoio de Centros de Inteligência e novas tecnologias. Nesse contexto, propõe-se uma releitura do princípio do acesso à justiça, com destaque para a racionalização do uso dos recursos e para os meios adequados de solução de conflitos, de forma a se alcançar uma justiça efetivamente sustentável e pacificadora, em linha com os objetivos da Agenda 2030 da ONU.
O esforço contínuo do CNJ na adoção de medidas e recomendações visando à identificação e à prevenção da litigância abusiva se traduziu na recente Recomendação nº 159, publicada em outubro de 2024, que elenca hipóteses que podem indicar a ocorrência de abuso do direito de litigar e lista medidas que podem ser adotadas para coibir tal prática. O enfrentamento da litigância abusiva ganhou especial atenção com o julgamento, pelo STJ, do Tema nº 1.198, em março de 2025, que faculta ao magistrado a exigência de documentos comprobatórios da autenticidade da postulação e do interesse de agir da parte para permitir o prosseguimento da ação.
Mas é preciso ir além. O Judiciário deve ser compreendido como parte de um ecossistema de justiça, e não como seu único polo. A interpretação moderna do acesso à justiça, alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 16 da Agenda 2030 da ONU, exige uma reconfiguração do papel das partes, dos advogados e das instituições. A Justiça não pode ser ilimitada e indiscriminada. Ela deve ser sustentável, eficiente e pacificadora.
Nesse novo paradigma, propõe-se o reconhecimento de uma nova onda renovatória, que possa promover o equilíbrio entre o amplo acesso e o uso responsável dos recursos judiciais. Essa onda deve se basear em quatro pilares: (i) desjudicialização racional, por meio do incentivo a métodos adequados de resolução de conflitos; (ii) valorização da boa-fé processual, com responsabilização efetiva por abusos; (iii) revisão crítica dos incentivos ao litígio, inclusive no que se refere à gratuidade processual e aos honorários; e (iv) uso da tecnologia e da inteligência artificial, para triagem e identificação de padrões predatórios (como já vem ocorrendo em diversos tribunais por meio dos seus Centros de Inteligência).
O verdadeiro acesso é aquele que leva à pacificação e à tutela efetiva, e não à reprodução mecânica de petições com finalidades que nem sempre correspondem a interesses legítimos. Como bem alertou o Ministro Luís Roberto Barroso: “a sobreutilização do Judiciário congestiona o serviço, compromete a celeridade e incentiva demandas oportunistas”. [2]
A litigância abusiva, por fim, não é apenas um problema jurídico, mas um desafio ético, econômico e institucional. Seu combate exige uma profunda mudança de cultura entre os operadores do Direito, no sentido de promover o verdadeiro acesso à justiça (cultura da pacificação), e não simplesmente um acesso ao Judiciário (cultura da sentença).
[1] De acordo com a Nota Técnica 1/2022, publicada pelo Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.995, Distrito Federal. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Julgado em: 13 dez. 2018.
Sobre a Autora
Michele Lyra é doutora em Direito Processual pela UERJ