Por Karina D'Ornelas* e Priscila França*
O dia 20 de novembro representa um marco na nossa história, remonta à luta de Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência contra os 400 anos de escravidão no Brasil. Uma data que nos provoca a pensar sobre os atuais dilemas sociais e o quanto ainda estamos longe de refletir a nossa pluralidade em todos os espaços que ocupamos. Está certo que devemos “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro” se quisermos ter maior coerência e avançar com passos firmes, mas por que o tema tem estado tão presente nos corredores corporativos?
Isso acontece porque o fator “pertencimento” também compõe a equação quando buscamos times de alta performance. As pessoas querem se enxergar no outro para compreender suas próprias perspectivas de crescimento. Em um ambiente marcado pela inteligência artificial, pelas redes sociais e pelo dinamismo na troca de informação – ou desinformação -, precisamos de um repertório amplo e consistente, e apenas a pluralidade de visões nos oferece isso. A representatividade, portanto, tem se mostrado como uma chave de acesso para medir a qualidade das nossas relações, tanto da porta para dentro quanto da porta para fora.
Em tempos de COP30, entendemos que o futuro é ancestral. Cada geração é convocada a enfrentar os dilemas deixados pela anterior e, neste momento, já reconhecemos que precisamos reconstruir relações mais saudáveis: entre pessoas e com a natureza. A coordenadora desta coluna esteve em Belém e, no próximo artigo, trará uma leitura direta do que foi debatido e decidido por lá. Fato é que a mesma capacidade que temos de destruir, temos de curar. E escolher como exercê-la determina se marcas e organizações ganham relevância e diversificam sua receita.
Estruturar uma governança inclusiva garante representatividade e nos habilita a acessar todos os espaços com estratégia e segurança. Afinal, apenas quando refletimos uma linguagem plural e equitativa estamos realmente aptos a enfrentar qualquer nível de crise e a dialogar com a sociedade como um todo. É uma simples questão de lógica.
Portanto, após anos assessorando conselheiras e executivas em empresas de grande relevância no Brasil, a coautora deste artigo e fundadora da Turmalina Negra Soluções – Priscila França – conclui que a tríade entre ética, integridade e diversidade vem sendo alicerce para grandes avanços. O racismo estrutural e a desigualdade socioeconômica continuam sendo lacunas profundas e silenciosas que moldam nossas relações e oportunidades a nível econômico, político e cultural. No interesse de garantir ambientes prósperos e sólidos, o compliance antidiscriminatório se apresenta como uma abordagem indispensável e um raio X para fortalecer os sistemas de Governança, Riscos e Compliance.
Mais do que cumprir normas, ele se torna um instrumento de equalização das discrepâncias sociais e uma ferramenta de controle sobre temas que, por sua vez, têm um grande impacto social e relevância jurídica, conferindo robustez ao exercício na responsabilidade corporativa na medida certa. Isso significa que as empresas precisam ir além da legislação e alinhar, cultura, comportamentos, políticas e práticas aos compromissos éticos e à urgência de endereçar o debate racial no Brasil, se quiserem coerência social e legal entre suas práticas e discursos.
Esse movimento exige maturidade, e compreender o racismo estrutural e seus modos operantes é fundamental para assim discutirmos avanços possíveis. Como destaca o brilhante prof. Dr Adilson Moreira, políticas corporativas consideradas “neutras”, que tratam todos de forma igual, ignoram que as pessoas não partem do mesmo ponto histórico, social e institucional. A neutralidade, portanto, não promove igualdade ela a impede.
Por isso, práticas de compliance que não consideram o recorte racial e econômico de inclusão acabam reproduzindo e fortalecendo desigualdades. A advogada Ana Bavon aprofunda essa discussão ao apresentar a ideia de governança inclusiva como uma infraestrutura ética necessária para sustentar mudanças reais. Isto é, decisões corporativas precisam estar apoiadas em comitês formados por pessoas plurais, com vivências e conhecimentos complementares, além de protocolos que assegurem coerência com uma compreensão antirracista.
Como o racismo é um fenômeno estrutural, estabelecer práticas que equalizem a questão racial no Brasil acaba por promover o avanço de todas as demais pautas de grupos sub-representados. Logo, cabe ao compliance romper com uma lógica que promove involução socioeconômica com procedimentos transparentes efetivos, com um olhar inclusivo, fluxos definidos, investigações independentes e consequências proporcionais às condutas discriminatórias.
O antropólogo Michel Alcoforado lembra que o Brasil construiu um imaginário de cordialidade que mascara práticas discriminatórias e impede enfrentamentos diretos sobre desigualdades raciais. Nas empresas, isso se manifesta em microagressões, políticas de exclusão e escassez de oportunidades, formando barreiras simbólicas e produzindo silenciamentos. Por isso, o compliance antidiscriminatório também precisa fomentar uma comunicação e uma narrativa institucional alinhadas às práticas antidiscriminatórias, capazes de reposicionar identidades, histórias e práticas corporativas à luz das demandas sociais do nosso tempo. Na prática, isso exige que a área seja composta por pessoas diversas, com conhecimento aplicado, buscando qualificar análises, decisões e protocolos internos.
A governança tradicional se sustenta em princípios como transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa, porém, sem o compliance antidiscriminatório, dificilmente esses pilares se traduzem em práticas diárias que garantam gestão de riscos, controles internos e auditoria corporativa de forma estratégica e segura. Na gestão, é essencial mapear riscos relacionados à discriminação, ao assédio racial e aos vieses presentes nos processos decisórios. Nos controles internos, implementar mecanismos que previnam práticas discriminatórias na contratação, promoção e desligamento. Já a auditoria interna deve conduzir análises periódicas de maturidade antidiscriminatória, avaliando indicadores, práticas e resultados concretos.
A implementação de instrumentos específicos é fundamental para consolidar essas práticas. Protocolos antidiscriminação são mecanismos centrais, contemplando acolhimento, triagem, investigação, parecer jurídico, aplicação de sanções, não retaliação, incentivo de ações afirmativas, métricas e metas.
As políticas institucionais devem abordar conceitos como racismo, discriminação, assédio e microagressões, além de estabelecer consequências transparentes para comportamentos violadores. O canal de denúncia precisa oferecer anonimato, acolhimento e segurança, sendo operado por profissionais capacitados para lidar com questões raciais. Os treinamentos dirigidos para os gestores desses canais devem ser contínuos, conectando os valores da organização às mudanças estruturais que pressionam nossa adaptação, e evitando ações pontuais ou meramente informativas. Indicadores e monitoramento completam a estrutura.
Um bom exemplo de como iniciativas estruturadas podem transformar cultura e fortalecer a responsabilização empresarial é o Pacto Pela Equidade Racial. Trata-se de uma agenda global voltada a equidade racial no Brasil, ampliando o debate econômico sobre o tema e atraindo investidores interessados em métricas objetivas de impacto social.
A governança do futuro é ética, inclusiva e orientada à equidade. O compliance antidiscriminatório é o motor que impulsiona essa grande engrenagem de transformação, garantindo que as organizações avancem de forma concreta, responsável e alinhada às demandas contemporâneas por transparência e integridade. Mais do que um diferencial, trata-se de um compromisso essencial para que instituições construam legitimidade, confiança e impacto positivo duradouro, evitando iniciativas circunstanciais que resvalem no socialwashing.
Sobre as Autoras
Karina D'Ornelas é Advogada. Pós-graduada em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Pós-graduada em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUC-RS. Especializações em Direito Ambiental e Direito Empresarial pela FGV Direito Rio. Mestre em História da Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Liderança executiva em ESG e Consultora Sênior em Sustentabilidade Corporativa. Integrante do Comitê de Ética do Pró-criança Cardíaca. Diretora Técnica da Fundação Hermann Hering. Professora e mentora para advogadas negras, também é coautora dos livros "Jurídico 5.0 & Operações Exponenciais” (2024) e “Direito Ambiental Empresarial: desafios, estratégias e inovação sustentável” (2025).
Priscila França é Especialista em Governança, Compliance e Gestão de Riscos, fundadora da Turmalina Soluções e do Instituto Equânime Afro Brasil. Sua trajetória conecta governança corporativa, diversidade e impacto social, fortalecendo práticas éticas, humanas e inclusivas em empresas, instituições e comunidades. Associada fundadora do Pacto pela Equidade Racial, co-fundadora da Frente Nacional Antirracista e integrante da rede Mães Negras do Brasil.



