O Brasil em diálogo com o mundo globalizado por meio da Resolução CD/ANPD nº 19
Por Thamíres Carvalho Castellani*
À medida que a tecnologia avança e o fluxo de informações se intensifica, os dados pessoais se tornam ativos estratégicos nas relações públicas e privadas. Nesse cenário, o Brasil precisou adotar normas específicas, resultando na criação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabeleceu diretrizes inspiradas em padrões globais.
A entrada em vigor da LGPD representou uma nova etapa na estruturação das relações jurídicas. Nesse contexto, os contratos funcionam como instrumentos-chave para formalizar regras, delimitar responsabilidades e viabilizar a conformidade com a legislação de proteção de dados.
Embora a LGPD não imponha, de forma expressa, a obrigatoriedade de celebração de contratos, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) reconheceu sua importância no Guia Orientativo (v.2.0), os recomendando para documentar instruções, definir responsabilidades e medidas de segurança, mitigando riscos no tratamento de dados pessoais.
Assim, contratos são fundamentais para responsabilização e prestação de contas (accountability). Dependendo do risco e do papel de cada agente, as cláusulas contratuais devem ser adaptadas: operações simples podem ter disposições mais simplificadas; cenários mais sensíveis exigem cláusulas mais rigorosas. Essa proteção contratual pode ocorrer em cláusulas específicas no contrato, aditivos, anexos ou por meio do Data Processing Agreement (DPA). O fundamental é uma arquitetura clara, refletindo adequação operacional, técnica e regulatória.
No contexto atual, a transferência internacional de dados pessoais exige atenção especial devido à constante circulação de informações no ambiente digital globalizado. Exemplo disso é o uso de redes sociais, em que fotos enviadas no Brasil podem ser automaticamente armazenadas no exterior, revelando limites tênues entre coleta, transferência e armazenamento.
Projeções do Fórum Econômico Mundial indicam que, até 2030, dois terços do comércio digital (aproximadamente 1,78 trilhão de dólares) dependerão de fluxos internacionais de dados, destacando a necessidade urgente de regulamentação eficaz e segurança jurídica.
Para acompanhar a economia digital globalizada, o Brasil precisou adotar padrões regulatórios compatíveis internacionalmente, detalhando na LGPD as condições para transferências internacionais legítimas, definidas como envio de dados pessoais a país estrangeiro ou organismo internacional (art. 5º, XV).
Essa circulação constante de dados ocorre tanto em grandes empresas multinacionais quanto em negócios menores e atividades cotidianas. Importante ressaltar que transferência internacional não se limita ao envio direto, o armazenamento em servidores estrangeiros ou o acesso remoto do exterior também configuram essa operação.
Os artigos 33 a 36 da LGPD regulamentam as transferências internacionais, permitindo-as em situações como decisão de adequação de proteção do país destinatário, cláusulas contratuais específicas ou padrão aprovadas pela ANPD, normas corporativas globais, selos ou certificados reconhecidos, cooperação jurídica internacional, proteção à vida ou integridade física, execução de políticas públicas, autorização da ANPD, consentimento específico do titular e necessidade de execução contratual.
Na execução contratual, a transferência é permitida quando necessária para cumprir obrigações diretamente com o titular ou realizar medidas pré-contratuais solicitadas por ele.
O artigo 34 atribui à ANPD avaliar o nível adequado de proteção de outros países, considerando critérios objetivos como respeito aos direitos dos titulares e garantias jurídicas e institucionais existentes. O artigo 35 atribui à ANPD definir o conteúdo das cláusulas padrão, validar cláusulas específicas e normas corporativas, realizar diligências e designar organismos de certificação sob sua supervisão, podendo revisar atos incompatíveis com a LGPD. O artigo 36 exige comunicação à ANPD sobre alterações nas garantias previamente aceitas, assegurando conformidade regulatória contínua.
Embora a LGPD já previsse mecanismos para transferência internacional, dada a complexidade, surgiu a necessidade de regulamentação complementar, implementada pela Resolução nº 19 da ANPD, que consolidou instrumentos formais para legitimação, reforçando a segurança jurídica.
A Resolução nº 19 introduziu importantes diferenciações entre transferência internacional (dados enviados para país estrangeiro ou organismo internacional) e coleta internacional (coleta direta por agente localizado no exterior). Definiu, ainda, as figuras do exportador e importador de dados.
Em âmbito contratual, estabeleceu Cláusulas-Padrão Contratuais (CPCs), obrigatórias na íntegra, podendo ser incorporadas a contratos existentes ou utilizadas de forma apartada, exigindo informações claras sobre finalidades do tratamento, medidas de segurança e obrigações de transparência. Quando as CPCs não são aplicáveis, as Cláusulas Contratuais Específicas precisam da aprovação prévia da ANPD, comprovando garantias adequadas e compatibilidade com LGPD e Resolução nº 19.
As Normas Corporativas Globais (NCGs) se destinam a transferências internacional de dados entre organizações do mesmo grupo ou conglomerado de empresas, formalizando o compromisso de cumprimento da LGPD e aprovação obrigatória da ANPD. Precisam atender requisitos detalhados sobre transferências, países envolvidos, mecanismos de direitos dos titulares, definição de responsabilidades, processo de revisão e comunicação obrigatória à ANPD em alterações relevantes.
A Resolução nº 19 também permite o reconhecimento de cláusulas padrão internacionais equivalentes às brasileiras pela ANPD.
Foi dado prazo até 23 de agosto de 2025 (12 meses após publicação) para adequação contratual e operacional. Esse prazo exige planejamento estratégico e colaboração entre áreas jurídicas e técnicas.
Além da obrigação legal, a conformidade com a Resolução nº 19 representa um diferencial competitivo, fortalecendo a imagem institucional, ampliando a confiança de parceiros e investidores, e posicionando empresas brasileiras estrategicamente no mercado global. Proteger os dados pessoais não é apenas um dever legal, mas uma estratégia fundamental para o crescimento econômico.
Sobre a Autora
*Thamíres Carvalho Castellani é advogada especializada em Direito Contratual, com experiência na condução de projetos jurídicos estratégicos e na consultoria para empresas de atuação nacional e internacional. Atua com foco na elaboração, revisão e negociação de contratos empresariais, bem como na adequação legal à proteção de dados e no assessoramento em temas de Direito Digital e Inovação. Graduada em Direito pelo IBMEC e pós-graduanda em Contratos pela PUC, possui formação complementar em Proteção de Dados, Contratos e Propriedade Intelectual.
Fontes:
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AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Nova versão do Guia dos Agentes de Tratamento. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/nova-versao-do-guia-dos-agentes-de-tratamento.
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