Por Claudia Abdul Ahad Securato*
Nos últimos anos, muito se falou sobre diversidade no ambiente corporativo. O tema saiu das cartilhas de responsabilidade social e passou a figurar em relatórios anuais, campanhas de marketing e, não raro, nas metas dos executivos. Mas há um risco nessa transição: a diversidade se tornar apenas um adereço retórico, um “selo de inclusão” estampado em apresentações de powerpoint, sem efetividade real na prática cotidiana das empresas.
É nesse ponto que o jurídico tem um papel transformador a desempenhar. Tradicionalmente visto como a área dos entraves e alertas sobre riscos, o departamento jurídico pode ser, o orquestrador da diversidade real. É ele quem dá sustentação, consistência e credibilidade às iniciativas inclusivas, assegurando que elas resistam ao teste do tempo, do mercado e, claro, do Judiciário.
O desafio, e a oportunidade, é ser o jurídico que constrói pontes: que mostra não só porque algo não pode ser feito, mas sobretudo como pode ser feito. Essa mudança de mentalidade é essencial, porque não há diversidade verdadeira sem estruturação normativa, sem políticas claras e sem respaldo legal.
Isso vale tanto para departamentos jurídicos internos quanto para escritórios de advocacia terceirizados, que cada vez mais são chamados a assumir papel consultivo em temas de governança, ESG, diversidade e inclusão.
O Jurídico como arquiteto de ações afirmativas
Falar em diversidade sem falar em ações afirmativas é como tentar construir um prédio sem fundação: a estrutura não se sustenta. É preciso estabelecer mecanismos claros, com metas e critérios objetivos, e isso só se viabiliza com respaldo jurídico consistente.
Um exemplo clássico é a implementação de cotas em processos seletivos. Muitas empresas desejam reservar vagas de estágio ou trainee para pessoas negras, mulheres, pessoas com deficiência ou candidatos de origem socioeconômica vulnerável. A ideia é legítima e tem amplo respaldo social.
Mas, sem a devida fundamentação legal, a iniciativa pode ser alvo de questionamentos. É aqui que entra o papel do jurídico: construir o desenho normativo do programa, garantindo que esteja alinhado à legislação e à imagem institucional da empresa.
Outro campo fértil é a gestão de fornecedores. O jurídico deve sugerir, e pode estruturar, cláusulas contratuais que incentivem diversidade nas equipes prestadoras de serviço. Tais cláusulas não só fortalecem a cadeia de valor como projetam impacto social para além dos muros da empresa contratante.
Quando um programa de diversidade é juridicamente robusto, ele não só resiste a questionamentos como se torna referência no mercado. A pesquisa “Diversidade, Equidade e Inclusão nas Organizações – Ciclo 2024/2025” (Deloitte Brasil, 2024) mostra que iniciativas de inclusão (como metas para minorias) melhoram a percepção positiva de mercado, além de fortalecer a marca empregadora ao aumentar engajamento e inovação.
Em síntese, o jurídico é quem garante que ações afirmativas sejam mais do que intenções: sejam políticas consistentes, seguras e capazes de gerar impacto real.
O Jurídico como guardião da conduta em investigações internas
Se ações afirmativas são o alicerce da inclusão, as investigações internas são o termômetro da confiança. Não há diversidade real em uma organização onde vítimas de assédio, discriminação ou qualquer conduta abusiva não se sentem seguras para denunciar.
A área de compliance, além de zelar pela integridade, deve atuar como parceira na valorização da diversidade, e as empresas têm investido cada vez mais nesse setor. Segundo o estudo “Corrupção e integridade no mercado brasileiro: a percepção dos profissionais de compliance”, realizado pela Quaest em novembro de 2024 a pedido da Transparência Internacional-Brasil, 68% das empresas afirmaram terem feito, nos últimos cinco anos, investimentos recordes em compliance.
Nesse contexto, o jurídico assume um papel fundamental: o de guardião da equidade, garantindo que investigações sejam conduzidas com justiça, sensibilidade e respeito.
Uma investigação de compliance, longe de ser uma mera burocracia, traz impactos reais nas vidas e carreiras de todos os envolvidos, e precisa ser vista com a máxima seriedade. O jurídico deve moralizar esse cenário ao desenhar procedimentos claros, equilibrados e inclusivos.
Um primeiro ponto é assegurar que vítimas e denunciados sejam ouvidos com o mesmo cuidado, mas sem ignorar os contextos de vulnerabilidade. Em casos de assédio moral ou sexual, por exemplo, a palavra da vítima precisa ser considerada com a devida seriedade, sem cair na armadilha de tratá-la como mera “versão” contra a do acusado. Isso não significa presunção de culpa, mas sim reconhecer que a desigualdade de poder e os vieses estruturais podem silenciar ou fragilizar testemunhos.
Outro aspecto é a criação de protocolos que reconheçam vieses estruturais. Em denúncias de racismo, por exemplo, é comum que expressões discriminatórias sejam minimizadas como “brincadeiras” ou “mal-entendidos”. O jurídico, ao conduzir ou supervisionar a investigação, deve assegurar que tais condutas sejam avaliadas dentro do contexto de um histórico de exclusão, se houver, e não como episódios isolados. Isso evita a banalização da violência simbólica e fortalece a credibilidade da apuração.
A confidencialidade também é um pilar. O jurídico deve estabelecer critérios claros de sigilo em todas as etapas, assegurando que denunciantes e denunciados não sejam expostos a retaliações, perseguições ou isolamento dentro do ambiente de trabalho.
No fim das contas, o jurídico que atua em investigações internas assegura que as regras do jogo sejam claras, que os envolvidos sejam tratados com dignidade e que a empresa seja coerente com seus discursos de diversidade.
O Jurídico como educador e multiplicador de boas práticas
Muitos ainda enxergam o jurídico como uma área distante e inacessível, com linguagem rebuscada e uma espécie de “oráculo” que só aparece para barrar projetos ou remediar problemas graves.
Mas quando o jurídico assume a postura de educador, se torna aliado estratégico do negócio, traduzindo normas e riscos em práticas cotidianas que qualquer colaborador pode compreender e aplicar. O primeiro passo é atuar em conjunto com outros setores.
Isso significa, por exemplo, elaborar materiais de orientação. Políticas inclusivas só funcionam quando são compreendidas por quem deve aplicá-las. Não adianta um manual jurídico de cinquenta páginas em linguagem técnica: é preciso criar guias rápidos, FAQs acessíveis e até mesmo checklists práticos para apoiar líderes e equipes no dia a dia.
Imagine um gestor de fábrica que precisa contratar aprendizes: em vez de se perder em normas trabalhistas e de inclusão, ele pode consultar um roteiro simples elaborado pelo jurídico que explique como priorizar candidatos por critério de renda familiar, ou PCDs, sem violar nenhuma lei.
O jurídico também pode contribuir em treinamentos de liderança, explicando os fundamentos legais por trás das políticas de diversidade. Muitas vezes, gestores aderem às práticas inclusivas por obrigação, sem entender sua importância estratégica. Quando o jurídico mostra, com exemplos concretos, que tais políticas reduzem riscos de ações trabalhistas, fortalecem a reputação da empresa e atendem a parâmetros ESG exigidos por investidores, a adesão se torna mais genuína.
Vale lembrar que o papel educador do jurídico não se limita ao ambiente interno. Escritórios terceirizados, por exemplo, podem e devem oferecer workshops, palestras e materiais educativos para clientes. Ao fazer isso, eles se posicionam não apenas como prestadores de serviço, mas como parceiros valiosos.
Em resumo, quando o jurídico assume a função de educador, ele deixa de ser percebido como área distante ou proibitiva. Passa a ser visto como multiplicador de boas práticas, alguém que traduz a complexidade do direito em linguagem útil e aplicável. E, no campo da diversidade, esse papel é essencial: afinal, inclusão não se conquista apenas com leis e políticas, mas com pessoas que sabem como aplicá-las de maneira ética e efetiva.
O Jurídico como parceiro estratégico e catalisador da diversidade
Um dos desafios para a área jurídica é se desvincular da imagem de “trava” da inovação. Quantas vezes não ouvimos a frase: “O jurídico não deixa”?
Essa percepção, ainda muito presente, é fruto de uma atuação excessivamente reativa, centrada em evitar riscos sem considerar a visão sistêmica da empresa. O resultado é que o jurídico aparece como obstáculo, quando deveria ser um catalisador de soluções.
A inclusão não se faz em terreno neutro: ela exige decisões ousadas, políticas inovadoras e, muitas vezes, um reposicionamento institucional. É natural que surjam dúvidas e receios, mas o papel do jurídico é mostrar caminhos possíveis para que as iniciativas se tornem realidade com respaldo normativo.
Um exemplo claro está na comunicação corporativa. Campanhas de marketing inclusivas podem projetar reputação positiva, mas também carregam riscos: acusações de tokenismo, uso inadequado de símbolos culturais. O jurídico estratégico participa desde a concepção, orientando linguagem, imagens e mensagens que transmitam diversidade sem cair em armadilhas legais ou reputacionais.
Outro campo é a prevenção de litígios. Empresas que estruturam bem suas políticas inclusivas reduzem o risco de processos trabalhistas.
Basta lembrar quantos casos chegam ao Judiciário envolvendo discriminação ou ausência de equidade salarial. Em março de 2025, o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou o 3º Relatório de Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios, que revelou que, em 53.014 estabelecimentos com 100 ou mais empregados, as mulheres ganham em média 20,9% menos que os homens, o que é um campo fértil para reclamações trabalhistas muito bem fundamentadas.
O jurídico que atua de forma estratégica pode mapear vulnerabilidades e propor ajustes preventivos, evitando que problemas se transformem em passivos milionários.
Essa visão também se conecta diretamente à agenda ESG. Investidores, clientes e parceiros de negócio já não se contentam apenas com indicadores financeiros: querem garantias de que a empresa adota práticas sociais responsáveis e governança inclusiva.
Aqui, o jurídico tem papel de articulador: é ele quem assegura que os compromissos assumidos publicamente tenham sustentação normativa e sejam auditáveis. Em outras palavras, o jurídico dá corpo e credibilidade ao “S” (social) e ao “G” (governança) do ESG.
Ao fazer isso, o jurídico se posiciona como parceiro da alta liderança, participando das decisões estratégicas da empresa.
Em suma, ser estratégico é abandonar a postura do “não pode” para abraçar a mentalidade do “vamos descobrir como pode”. É transformar o jurídico de barreira em motor, de coadjuvante em protagonista.
Conclusão
Diversidade não é favor. É, ao mesmo tempo, uma exigência ética, um imperativo social e um diferencial competitivo. Mas, para deixar de ser discurso e se tornar prática consistente, a diversidade precisa de sustentação jurídica. É aqui que o jurídico se revela não como obstáculo, mas como viabilizador da transformação.
O jurídico pode e deve assumir papéis múltiplos e complementares: arquiteto de ações afirmativas, guardião de investigações internas, educador de líderes e multiplicador de boas práticas, parceiro estratégico da alta gestão e catalisador de políticas ESG.
Em todos esses papéis, há um ponto em comum: o jurídico não apenas reduz riscos, mas cria condições para que a diversidade floresça com legitimidade e solidez.
A advocacia eficaz reconhece sua capacidade singular de traduzir intenções em políticas concretas.
É por isso que o jurídico, seja dentro das empresas, seja em escritórios terceirizados, deve assumir o protagonismo: a parceria estratégica que deixa de ser “do contra” para se tornar o que mostram o caminho do sim.
No fim das contas, a pergunta que fica não é se as empresas devem investir em diversidade, mas como fazer isso de forma consistente, segura e transformadora. A resposta passa, inevitavelmente, pelo jurídico.
O jurídico, portanto, é o maestro de um processo que transforma inclusão em realidade e dá à diversidade não só voz, mas legitimidade.
Sobre a Autora
Claudia Abdul Ahad Securato é Advogada trabalhista, palestrante e mentora. Sócia do Securato Advogadas. Aulas e palestras na Saint Paul Escola de Negócios. Mestre em Direito dos Negócios pela FGV. Atua na interseção entre o direito e o desenvolvimento de pessoas, com foco em lideranças mais conscientes, ambientes organizacionais saudáveis e estratégias jurídicas que respeitam a complexidade das relações humanas. Estuda e incentiva a presença de mais mulheres em espaços de liderança, com consistência, escuta e propósito.
Acredita na literatura como ferramenta para estimular o pensamento crítico, dentro e fora do Direito.





