Por Andrea Maia*
Algumas expressões parecem ter vida própria. Dormem por anos no fundo da memória e, de repente, despertam com força ao serem evocadas por alguém que as entende em profundidade. Foi o que aconteceu comigo recentemente, ao ouvir o professor Fredie Didier Junior mencionar, durante uma palestra, a expressão “olhos de ver”.
Fazia tempo que eu não ouvia esse termo. Mas naquele instante, ela não só me fez lembrar — ela me fez sentir. Em tempos de tanto ruído, urgência e automatismos no mundo jurídico, os olhos de ver talvez sejam um dos instrumentos mais potentes (e mais esquecidos) na resolução de conflitos.
Ver além do processo
No Direito, estamos acostumados a olhar para documentos, provas, decisões, jurisprudência. Enxergamos o que está formalizado, mas muitas vezes deixamos passar o essencial: o que está vivo ali dentro.
Olhos de ver não se limitam à literalidade dos autos. Eles captam os não ditos, os movimentos sutis, os sentimentos por trás dos argumentos. Eles nos lembram de que, por trás de cada conflito, existe uma história que merece ser compreendida — ainda que não caiba nos autos.
E é justamente essa escuta qualificada, essa abertura sensível e estratégica ao mesmo tempo, que pode redefinir o rumo de uma negociação, de uma audiência ou até mesmo de uma atuação judicial mais humana.
Três ferramentas da mediação para desenvolver os olhos de ver
Ter olhos de ver não é um dom inato — é uma prática. E como toda prática, ela pode (e deve) ser cultivada. A seguir, compartilho três técnicas fundamentais que podem ajudar advogados, mediadores e operadores do Direito a enxergar mais longe e lidar melhor com conflitos complexos:
1. Escuta ativa e validação emocional
A escuta ativa é mais do que prestar atenção em silêncio. Ela exige presença genuína, curiosidade real e disposição para acolher o que o outro está dizendo — inclusive o que não é dito em palavras.
Muitas vezes, a solução de um conflito está menos ligada à resposta jurídica e mais à sensação de ter sido ouvido de verdade. Quando validamos a experiência do outro, mesmo sem concordar com ela, criamos abertura para o diálogo.
Algo simples como “entendi que, para você, esse rompimento representou uma quebra de confiança” pode transformar a dinâmica de uma conversa — seja com o cliente, com a parte contrária ou até com um colega.
Essa técnica, tão comum em processos de mediação, pode e deve ser aplicada no cotidiano da advocacia: em reuniões, atendimentos, negociações ou mesmo na forma de conduzir uma conversa difícil.
2. Mapeamento de interesses e necessidades ocultas
No ambiente jurídico, lidamos frequentemente com posições: aquilo que a parte reivindica. Mas por trás das posições estão os interesses e, mais profundamente, as necessidades reais — muitas vezes não verbalizadas.
Um pedido de indenização pode ocultar a necessidade de reconhecimento. Um litígio entre sócios pode esconder mágoas acumuladas e falta de comunicação. Quando nos limitamos às posições, empobrecemos as possibilidades de solução.
O mapeamento de interesses é uma ferramenta que convida à investigação: o que realmente está em jogo aqui?
Algumas perguntas que ajudam nesse processo:
“O que é mais importante para você nessa situação?”
“Se isso fosse resolvido, o que mudaria para você?”
“Há algo que ainda não foi dito, mas que você gostaria que fosse considerado?”
Essa abordagem permite construir acordos mais sustentáveis, que atendem não apenas aos aspectos jurídicos, mas também às motivações humanas envolvidas.
E ela não serve apenas para “entender o outro lado”. Advogados também podem (e devem) aplicá-la com seus próprios clientes, desde o início da demanda. Isso evita estratégias desalinhadas e ajuda a encontrar caminhos mais eficazes — às vezes até extrajudiciais.
3. Uso estratégico do silêncio e da pausa
Pode parecer contraditório, mas uma das ferramentas mais poderosas para lidar com conflitos é o silêncio.
Em um mundo apressado e barulhento, silêncios bem posicionados podem abrir espaço para a reflexão, baixar defesas emocionais e permitir que o interlocutor revele algo essencial. Eles criam tempo para que o que está latente venha à tona.
Em negociações ou reuniões tensas, o silêncio é uma forma de dar espaço — e de ouvir mais profundamente. Ele demonstra respeito, transmite equilíbrio e, muitas vezes, diz mais do que palavras.
Mediadores utilizam o silêncio como técnica. Advogados podem fazer o mesmo: ao invés de preencher cada segundo com argumentos, aprender a pausar pode ser um diferencial estratégico.
Concluindo, cultivar os olhos de ver é, no fundo, um compromisso com a transformação. É decidir olhar para o conflito não como um obstáculo, mas como um espaço de construção. É recusar a cegueira estratégica e optar por enxergar com mais profundidade, com mais humanidade.
Em um sistema jurídico tão sobrecarregado, desenvolver essa percepção sensível e ampliada pode ser um diferencial — para quem advoga, para o mediador, para quem decide. É uma escolha que exige treino, empatia e disposição para olhar também para dentro de si.
Como disse o professor Didier, os olhos de ver nos convidam a algo maior. Que a gente aceite esse convite — com coragem, escuta e presença.
Sobre a Autora
Andrea Maia é Fundadora da Mediar360 - Plataforma de Resolução de Disputas. Vice Presidente de Mediação do CBMA – Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Vice Presidente de Mediação da do CIAM - Centro Internacional de Arbitraje de Madrid. Membro do Conselho de Administração da AB2L – Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs. Colaboradora do Kluwer Mediation Blog.