Regulação, Inovação e Contratos de Tecnologia: A equação do futuro
Oferecer múltiplas “portas” — ou métodos adequados à natureza de cada disputa — amplia o verdadeiro acesso à justiça
Por Carolina Leite Fontoura*
No contexto em que o mundo jurídico se situa, os advogados precisam acompanhar constantemente as muitas inovações com as quais lidamos: uso de Inteligência Artificial (“IA”) como ChatGPT e suas inúmeras implicações é uma realidade palpável; contratação por clickwrap, quando um mero clique inicia uma relação comercial ou compra; uso de biometria facial para formalizar contratação; etc. É sabido que a doutrina e jurisprudência caminham em passos mais lentos que a inovação, que por definição deve ser um processo disruptivo. Como equalizar esses dois universos, me parecer ser o desafio do momento para profissionais do direito.
Se voltarmos a janeiro de 2020, era impensável imaginar que audiências e o trabalho jurídico seriam realizados de forma remota, e que o tradicional carimbo físico nos contratos, acompanhado da rubrica do advogado responsável, desapareceria da rotina dos departamentos jurídicos. Em poucos anos, a área jurídica passou por uma transformação impressionante, mas será que já há um volume significativo de decisões judiciais sobre os temas com os quais lidamos diariamente como advogados? Como regulamentar, e decidir, sobre o uso de tecnologia?
Não cabem afirmações categóricas para as perguntas acima porque há muitas formas diferentes de respondê-las, e nem pretenderia trazer opinião definitiva sobre algo tão mutável como tecnologia, mas sim trazer olhares possíveis para o debate. Pegando como exemplo as contratações de SaaS (Software as a Service)1 essencialmente composta de contratos digitais, uma parte do todo que envolve a oferta de plataforma ou tecnologia hoje em dia é termos, de um lado, agilidade, escala e, de outro, a segurança jurídica das contratações.
O mercado de ambientes digitais para assinatura dos instrumentos jurídicos segue mais aquecido do que nunca no pós-pandemia e na era da IA. O que chamamos atualmente de contrato digital2 ou eletrônico nada mais é que uma forma diferente de firmar a relação jurídica negocial, sem a necessidade de papel físico ou assinaturas manuscritas. São os contratos criados e assinados usando meios eletrônicos como aplicativos específicos ou plataformas de assinatura digital.
Para que um contrato digital seja considerado válido, temos os mesmos elementos dos contratos físicos como: consentimento mútuo e legítimo das partes envolvidas, objeto lícito, capacidade legal para celebração do ato, entre outros. Contudo, as vantagens são muitas se compararmos aos contratos em papel, com ganhos inegáveis de facilidade, rapidez, economia e eficiência. É importante observar que, como tudo que é digital, sua implementação exige cuidados de segurança e autenticação para garantia da validade, seja por criptografia, assinaturas eletrônicas válidas e uso de fator duplo de autenticação. Não há nada pior que tentar executar um contrato sem validade ou cuja validade possa ser questionada pelo devedor na via judicial, por exemplo.
O ciclo de vida de um contrato, digital ou impresso, em alguns casos termina com discussões judiciais sobre a execução ou sobre a falta de pagamento de uma das partes. Nesse momento, discute-se: o contrato é válido? Como tornar o seu contrato, que se originou de um mero click, um instrumento seguro? Como disciplinar cláusulas que abordem IA? O Judiciário adentrará no mérito dessas inovações? São algumas perguntas que pretendemos responder a seguir.
O mundo jurídico evolui, embora nem sempre no mesmo ritmo que a realidade dos fatos. A transformação digital já é uma constante há tanto tempo que talvez faça mais sentido falar em fases de evolução do direito, em vez de uma revolução. Para que um tema se torne jurisprudência consolidada, é necessário que os tribunais o analisem de forma recorrente. No caso do clickwrap ou uso de biometria facial, a jurisprudência ainda não está totalmente pacificada, mas a análise de julgados selecionados permite identificar alguns requisitos essenciais para a validade dessas formas de aceite3.
Para que o uso do clickwrap seja válido no contexto empresarial, as cláusulas devem ser apresentadas de forma clara ao usuário, que deve manifestar sua concordância ativamente, por meio de um ícone de aceite, antes de acessar o software ou a plataforma adquirida. Além disso, é recomendável que haja, no mínimo, um fator de verificação da identidade do contratante, como a coleta dos dados pessoais do representante legal ou comercial, bem como o arquivamento adequado dos contratos para garantir registro e segurança jurídica.
Em muitos casos de contratações de softwares temos um Termo de Serviço ou de Uso como contrato, exposto no site, levando o cliente contratante ao ambiente digital do clickwrap por meio de formulários preliminares em que são fornecidos alguns dados como número de telefone, e-mail, pacote ou plano escolhido, etc. Em situações como essa, até o simples print da tela de aceite pode validar a relação contratual, não deixando espaço para pedidos de declaração de inexistência, em pese termos maneiras mais completas de formalizar uma contratação. É nesse sentido que caminha a jurisprudência brasileira, junto com a evolução do processo de contratualizar as relações:
“EMENTA: AÇÃO COMINATÓRIA - EXIBIÇÃO INCIDENTAL - DANO MORAL - SERVIÇO DE TELEFONIA - PROVA - TELAS DE COMPUTADOR - VALIDADE. A contratação de serviços de energia, muitas vezes, ocorre de forma verbal, sem contrato escrito. As telas de computador que refletem a prestação de serviço e a dívida do consumidor têm eficácia probatória, não tendo evidência de manipulação de informações. A relação jurídica e a contratação do serviço podem ser comprovadas por meio dessas telas, inviabilizando os pedidos de declaração de inexistência de débito, baixa de restrição de crédito e peças pecuniárias por dano moral.
Ação declaratória e indenizatória relacionada a um contrato de empréstimo consignado. O autor alega não ter celebrado o contrato, mas a existência do mesmo é comprovada pela assinatura eletrônica, incluindo biometria facial e geolocalização. O tribunal não acolheu o pleito de inexigibilidade do subsídio e indenização por danos materiais e morais.” (...) (grifos nossos)4
“AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. TELEFONIA. Suposta contratação fraudulenta formalizada mediante o mesmo aceite digital manifestado para portabilidade reconhecida. Equívoco alegado pela autora não evidenciado. Portabilidade assumida e contratação impugnada materializadas em instrumentos diferentes, celebrados em oportunidades distintas e assinados de forma autônoma. Inconteste manifestação de vontade da autora. Validade da contratação e consequente cobrança. Conclusão alcançada a partir das provas já carreadas ao processado até a prolação da sentença, mas corroborada pelas provas juntadas pela ré em sede recursal. Improcedência reconhecida. Precedentes. Demais argumentos prejudicados. Litigância de má-fé não configurada. Recurso provido.” (grifos nossos)5
A assinatura digital é mais do que um avanço na etapa de formalização, é a revolução do fluxo de ingresso digital do cliente enquanto contratante. Se o que existe é apenas um click, todo o ciclo de existência comercial daquele cliente se dá por meio da interação digital. Se temos um contrato no site da empresa, cujo ingresso é um click, não nos parece fazer tanto sentido manter as alterações deste contrato por meio de um termo aditivo tradicional, por exemplo. É neste sentido que a opção jurídica adequada pode ser implementar um sistema de aviso das alterações ao cliente, dando um prazo para que manifeste seu interesse em extinguir a prestação de serviço ou seguir utilizando. Em tempos de rapidez, contratar e encerrar parece ser um ativo vital do processo de venda de tecnologia.
É importante citar que o sistema de clickwrap também é válido em outros países como Estados Unidos, Argentina e México, com peculiaridades destes sistemas jurídicos, mas parece ser uníssono: o contrato digital é realidade no meio jurídico mundial. Especificamente nesses três países citados, para que seja preservada a validade jurídica do contrato são exigidos alguns cuidados específicos: por exemplo, na Argentina, se alguma disposição material do contrato for alterada, é necessário um novo aceite ou concordância do cliente indicando que tem ciência que a regra mudou, atualizando, assim, o documento que vai se manter vigente ao longo da relação comercial de forma simples e segura.
Já ao observarmos a questão da venda de IA, e sua consequente contratualização, traz ainda mais desafios, sequer mapeados. A chance de erros na performance precisa ser clara e evidente para o usuário que está contratando, como aliás em qualquer produto que se venda em fase de testes, por exemplo. Vale acrescentar que o uso de IA é realidade, inclusive, pelos Governos e Tribunais brasileiros. Neste sentido, nosso momento atual acaba por incrementar uma posição do Estado enquanto ser incentivador e regulador das atividades econômicas exercidas por outros atores, como os particulares.6
Usando como exemplo dessa posição mais reguladora do que impositiva como uma tendência7, o que certamente atrairá discussões importantes sobre os limites de apenas regular, temos a motivação exposta pelo Executivo ao sancionar o Marco Legal de CT&I, qualificando o normativo como “uma reforma profunda” na legislação que regula o sistema de ciência, tecnologia e inovação, com objetivo de alcançar agilidade, flexibilidade e menos barreiras à ação integrada entre agentes públicos e privados do setor. “Celeridade, regras simples, e ações tempestivas são imprescindíveis para que o ciclo de transformação da ciência em tecnologia, inovação, competitividade e desenvolvimento seja bem-sucedido”8.
O futuro do direito é incerto como o futuro das transformações digitais, e talvez essa seja a grande oportunidade para os profissionais, serem capazes de mudar as interpretações jurídicas do que aprenderam nos bancos das faculdades. Em um mundo rápido, fluido e inconstante, o que existe ou existia de tradicional no Direito enquanto ciência precisa e deve ser revisitado, afinal, as regras regulam o mundo real das relações. Um contrato comercial, por exemplo, nada mais é do que uma relação entre pessoas jurídicas, inseridas no contexto do mundo em que vivemos.
O Judiciário já sustenta a validade da assinatura por reconhecimento facial biométrico, afirmando que oferece maior segurança jurídica para ambas as partes, sendo uma solução eficaz para garantir a identificação do contratante. A biometria facial é amplamente utilizada por bancos, seguradoras e até mesmo pelo Governo Federal para validar identidades, sendo agora reconhecida como uma forma confiável de assinatura pelo mundo jurídico. É inegável, o futuro já é agora.
No intuito de, em alguma medida, dar concretude à relação com os pontos que escrevi, trago que atuo no mercado de tecnologia e inovação há muitos anos, liderando projetos e equipes de advogados. O caminho é sempre discutir, estudar e testar, para entender a melhor modelagem jurídica para a realidade de dado negócio, sistema ou produto. O debate sobre contratos digitais e novas tecnologias é coletivo, sempre.
Sobre a Autora
Carolina Leite Amaral Fontoura é Coordenadora Jurídica com mais de 10 anos de experiência nas áreas contratual, regulatória, consultiva (tributária, cível e trabalhista), compliance e contencioso, atuando em setores como tecnologia, óleo & gás, infraestrutura, terceiro setor e logística. Possui sólida trajetória em liderança técnica e gestão de pessoas, além de ampla vivência em auditorias (tribunais de contas, ministério público e auditorias externas). Liderou a estruturação de departamentos jurídicos, implementou programas de LGPD e coordenou o projeto Jurídico 4.0. É graduada em Direito e mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora de contratos, regulatório e inovação na PUC RJ, ANPROTEC, incubadora da UFRJ e no mestrado da UFRJ.
“Em linhas gerais, o software como serviço é justamente um software/plataforma que disponibiliza o acesso a um determinado serviço, de forma online, sem a necessidade de se adquirir um software “físico”. Nessa modalidade, estamos diante de um instituto parecido como o “aluguel”. Isso porque, por meio de uma Licença de Uso, o cliente/usuário final conquista o direito de utilizar/acessar o software, mas não possui a “propriedade” do mesmo.” Importância do Contrato de Licenciamento de Software as a Service (SaaS) para sua Startup. Disponível em: <https://ndmadvogados.com.br/artigos/importancia-do-contrato-de-licenciamento-de-software-service-saas-para-sua-startup>.
"O contrato eletrônico é o negócio jurídico realizado pelas partes contratantes, cuja manifestação de vontade é expressada por meio eletrônico, tais como: assinatura digital, certificado digital, proposta e aceite por e-mail, teleconferência, videoconferência, plataforma de e-commerce, sistema de mensagem instantânea, redes sociais ou Skype, dentre outros. Com efeito, a manifestação de vontade por meio eletrônico sobrepõe-se à sua instrumentalização, não sendo o contrato eletrônico uma nova espécie de contrato, mas sim um novo meio de formação contratual, podendo ser celebrado digitalmente total ou parcialmente pelas partes (ou seja, uma das partes pode assinar de forma manuscrita e a outra parte de maneira digital)" Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/325485/contratos-eletronicos.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. CONTRATAÇÃO ELETRÔNICA. BIOMETRIA FACIAL. VALIDADE. DESCONTOS SOBRE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. REGULARIDADE. 1. Evidencia-se a regularidade dos descontos efetuados sobre benefício previdenciário, alusivos a empréstimo efetivamente contratado. 2. Comprovada a contratação de empréstimo bancário, mediante biometria facial, bem como o aporte do numerário correlato em conta de titularidade da beneficiária, não há de se falar em dano moral indenizável. "Diante das informações prestadas pelo banco réu, que geraram verossimilhança da efetiva contratação pessoal, pelo autor, de operação de portabilidade, cabia ao autor infirmar os elementos de prova trazidos pela parte contrária, o que não fez. Com efeito, limitou-se a alegar a ausência de documento assinado, mas no caso houve assinatura digital, mediante reconhecimento facial biométrico, que é meio válido de manifestação autêntica de vontade, nos termos do art. 107 do CC, pois não existe exigência legal de que os contratos sejam sempre assinados de forma manual." (Brasil. Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP, Processo 1002728-68.2021.8.26.0484, Data de Julgamento: 24/11/21).
Brasil. Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG - AC: 5003729-60.2017.8.13.0245, Relator: Des. Octávio de Almeida Neves, Data de Julgamento: 06/12/2018, 12ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/12/2018).
Brasil. Superior Tribunal de Justiça - AREsp: 2.058.279, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Publicação: 02/05/2022)
“Sistematizando, de modo bastante simples, pode-se utilizar como ponto de partida o exame das funções básicas do Estado frente à atividade econômica e à alteração das prevalências ou prioridades. Essas funções podem ser divididas em três linhas, levando-se em conta o agir estatal: 1. O Estado como sujeito da atividade econômica, criando empresas sob seu controle, como as sociedades de economia mista, empresas públicas e respectivas subsidiárias; 2. O Estado como ente regulador, basicamente com o exercício da histórica atividade de polícia sobre as atividades econômicas, hoje ampliada para o campo da regulação normativa e da regulação administrativa (tendo, também, atividades de planejamento de caráter não vinculante para o setor privado); 3.O Estado exercendo atividades indutoras, através, por exemplo, de políticas fiscal e creditícia, no sentido de motivar atividades consideradas relevantes para o desenvolvimento econômico e social” (grifos nossos) (CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Reflexões sobre a atividade do Estado frente à atividade econômica. Revista Trimestral de Direito Público, nº 20, São Paulo, Malheiros, 1997, p.68).
“Caracterizados os danos morais, resta o arbitramento final do valor da indenização e, se as empresas usam ou não inteligência artificial para oferta de valores com vista a acordos extrajudiciais, isso é assunto que escapa à solução do Poder Judiciário, pois, em verdade, valores desse jaez, oferecidos antes da promoção da ação não impõe qualquer vinculação ao convencimento do Juízo, sempre restando à discricionariedade das partes e seus Advogados, avaliar o que mais e melhor lhes convém. Brasil. Tribunal de Justiça de SP, Acordão, Processo: 1013062-53.2024.8.26.0001, Data de Julgamento: 12.02.2025 (grifos nossos)
Presidenta Dilma sanciona novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, Segunda-feira, 11 de janeiro de 2016 às 12:56, Blog do Planalto. Disponível: <http://blog.planalto.gov.br/dilma-sanciona-marco-legal-da-ciencia-tecnologia-e-inovacao/>. Acesso: 19.mar.2025.
Bibliografia
CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. Reflexões sobre a atividade do Estado frente à atividade econômica. Revista Trimestral de Direito Público, nº 20, São Paulo, Malheiros, 1997.
Presidenta Dilma sanciona novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, Segunda-feira, 11 de janeiro de 2016 às 12:56, Blog do Planalto. Disponível: <http://blog.planalto.gov.br/dilma-sanciona-marco-legal-da-ciencia-tecnologia-e-inovacao/>. Acesso:19.mar.2025.
Importância do Contrato de Licenciamento de Software as a Service (SaaS) para sua Startup. Disponível em: https://ndmadvogados.com.br/artigos/importancia-do-contrato-de-licenciamento-de-software-service-saas-para-sua-startup. Acesso:09.mar.2025.
Contratos eletrônicos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/325485/contratos-eletronicos. Acesso:03.mar.2025.