Sobre ir além do Direito individual e coletivamente...
À medida que se caminha na carreira jurídica, fica muito claro que conhecer direito o Direito (excelência técnica) não mais é suficiente, e que outros atributos fazem diferença
Por Maria Goldberg*
À medida que se caminha na carreira jurídica, fica muito claro que conhecer direito o Direito (excelência técnica) não mais é suficiente, e que outros atributos fazem diferença: repertório de vida, narrativa bem refletida do que se agrega de valor ao mercado e soft skills (capacidade comercial, habilidade relacional e pensamento estratégico).
Diante deste contexto, escolho inaugurar a coluna Estratégicas* no Future Law 360º trazendo reflexões tiradas de duas obras não jurídicas de grandes juristas que admiro e que, ao longo dos últimos anos, têm explorado novas formas de trazer a público suas ideias e formação: José Roberto Castro Neves e Gustavo Binembojm, a quem ousada e carinhosamente aqui chamarei de “Zé” e “Gustavo”.
Neste artigo, pretendo mostrar como esses dois grandes referenciais me inspiraram a compreender o propósito de uma causa coletiva e a fortalecer minha trajetória como liderança estratégica junto a muitas outras mulheres.
Posso ser criticada por não estar trazendo reflexões sobre obras de mulheres neste primeiro momento, mas penso que devemos ser naturais com o tema do feminismo. O fato de ser mulher, executiva, advogada, mãe, artista, hoje judia, voraz leitora e uma sonhadora já traz representatividade a meu ver. Muitas oportunidades, eu espero, teremos de comentar obras de grandes mulheres, e as mulheres Estratégicas com as quais tenho o privilégio de interagir em nosso coletivo trarão também seus pensamentos nas próximas colunas.
Saiamos da caixa então, é o que costumo buscar e, necessariamente, não nos encaixemos em algo apenas por nos encaixarmos.
Sonho que o Direito e a Literatura consigam multiplicar e despertar mais pessoas do Direito (e jurídicas – adoro um trocadilho!): Assim como Gustavo e Zé, acredito na importância de pessoas que se dispõem a entender a complexidade da vida e das relações humanas e acreditam na potencialidade da literatura como instrumento da formação do caráter, como prefaciou o Merval Pereira no Caixa do Zé.
Me interessei pela obra Caixa de Palavras do Zé em razão de estar vivendo em casa o desafio de sensibilizar meus filhos adolescentes para leitura. Vivemos um tempo de tecnologias e precisamos tirar nossos filhos um pouco desse mundo através da leitura para ao mesmo tempo colocá-los mais atentos ao mundo (Zé, Caixa, p. 25). Podemos ter então, aqui, o Zé nos guiando e montando uma estratégia de sensibilização não somente dos nossos filhos, mas também de nós mesmos sobre o mundo em que vivemos – sim, tudo é estratégia! É instigante como o Zé se propôs - diante de tantas obras clássicas e vastamente comentadas ao longo de séculos - a montar tão objetivamente e, mais importante, nos brindando com sua visão de como tais obras impactaram a sua vida e sua formação como advogado e pessoa.
Sim, existem advogados que são pessoas! Quem me conhece sabe que não perco piada, ainda que criticando a nossa classe. Sejamos naturais mais uma vez e, também, humanos. Ao longo desses 25 anos de advocacia me debati com esse dilema que hoje vemos como um movimento: o de humanização da advocacia. É possível!!!
Zé nos fala da experiência da leitura. Pede desculpas e agradece. Se ressente de que o livro não termina. É um jogo infinito mesmo esse jogo que jogamos. E me lembro imediatamente do livro O jogo infinito, de Simon Sinek. Não é um clássico, como a maioria dos referidos pelo Zé. É um livro que nos traz um alento de que não vamos - e não devemos - chegar a lugar algum. A experiência da jornada - a experiência da leitura como propõe o Zé - é que deve nos satisfazer (p. 27). Livros são possibilidades - nos disse o Zé. E a eles agregamos a nossa sensibilidade. Sem ela, onde estaremos nós? Anestesiados?
Existem, portanto, 5 motivos para ler, segundo Zé:
conhecer a si mesmo
aprimorar a comunicação
interpretar
entender a humanidade
guardar valores
Além disso, Zé nos deu um depoimento e listou obras que nos mostram como, em sua opinião, é possível ser uma pessoa melhor, já que: conhecimento é poder, capacidade de sonhar, estímulo para enfrentar dificuldades, além do seu arremate final (como ler e o quê ler). Na p. 359 do Caixa, vi luz em uma linda referência à obra do rabino Kotzker que correlaciono também às ideias expressas no livro do Gustavo, O Rabino do mundo, a sabedoria judaica compartilhada: “Três caminhos estão abertos para o homem que está entristecido. Aquele que está nos primeiros degraus da escada lamenta. O que se encontra mais elevado se cala. Mas aquele que está no degrau mais alto faz da sua tristeza uma canção.” Independentemente do degrau em que esteja, sempre busquei fazer das minhas dificuldades, fraquezas e tristezas, arte. Sem arte, a vida não tem o mesmo colorido.
E com isso tento trazer um pouco mais dos pensamentos expressos no livro do Gustavo que de alguma forma me tocaram profundamente.
Celso Lafer, ao prefaciar a obra do Gustavo, ressaltou o que ele faz tão bem: o tal giro pragmático no qual Gustavo propõe um foco nos valores e na promoção dos melhores resultados para a sociedade, o que não é possível de ser feito, salvo se através da expansão do Direito através da leitura / literatura.
Ao escrever esse livro, O Rabino do mundo, Gustavo parece buscar pertencer, explorando a sua história e condição de judeu. Ao se encantar com a obra de Jonathan Sacks não estaria Gustavo buscando - através da literatura - como propõe Zé, conhecer a si mesmo? Creio que sim!
Para Gustavo, esse livro é de aventuras, permeada por interpretações da Bíblia, a bem da verdade. Como nos esclareceu o Zé, Bíblia quer dizer livro e até hoje é o livro mais vendido de todos os tempos. Em sua forma pragmática, diz Gustavo: o Velho Testamento trata da história dos homens e mulheres imperfeitos, todos nós. E o Novo Testamento trata da história de um homem perfeito, Jesus, o próprio Deus feito homem.
Pela narrativa do Gustavo, lembramos diversos conceitos da tradição judaica, hoje muito traduzidos também no mundo corporativo: por exemplo, na cadeira do Arthur Brooks, na Harvard Business School (curso Leadership and Happiness), ele ensina aos alunos nada menos do que o conceito super judaico de que a vida não é um destino a ser cumprido, mas um futuro a construir, um exercício de genuína liberdade.
A beleza do livro - como possibilidade - aqui um traço em comum nas obras de Gustavo e Zé - está em transformar o pensamento do Sacks justo com a história de vida e visão de mundo de Gustavo em uma possibilidade de tornar novo o velho e sagrado o novo, fazendo do judaísmo um patrimônio comum e acessível a todos (p. 23).
Não foi surpresa encontrar na obra de Gustavo um capítulo dedicado ao livro que mudou minha vida: em busca de sentido, de Viktor Frankl. Vi uma primeira menção a ele feita pela Nathalie Klein (empreendedora sucessora no grupo familiar de Samuel Klein) e resolvi ler. Fiquei muito impactada e comovida com a história do médico que encontrou razão no horror dos campos de concentração e conseguiu sobreviver. Constatei através dessa história algo que Nietzsche já tinha dito: aqueles que tem um porquê conseguem suportar quase qualquer como.
E essa ideia de ser guiado por uma busca interior mais profunda e essencial ao longo da vida que o judaísmo tanto mostra foi brilhantemente traduzida pelo Gustavo numa passagem do livro em que escreve algo que me tocou profundamente: ser judeu não tem a ver com o que somos, mas com o que somos chamados a ser. Não tem a ver com o fim, mas com o início da jornada. Me identifiquei demais e vi nesse trecho a minha própria história.
Sacks, como elucidado pelo Gustavo, coloca luz sobre um tema essencial: o de que o judaísmo busca mais o sagrado do que a felicidade, que nada mais é do que um efeito colateral de uma vida santa, com um senso de pertencimento que dá confiança para atravessar a jornada da vida.
Ao longo de anos, eu não entendia muito bem porque a religião judaica valoriza tanto o coletivo, ao mesmo tempo que destaca a liberdade individual. Talvez aqui eu devesse ter me aprofundado mais na literatura - sempre ela! - e lembro dos meus debates com os rabinos amigos quando tentavam me convencer - sem muito sucesso até então, eu confesso - de que o convívio em comunidade é parte fundamental da formação de um judeu. Sempre me questionei, ao criar uma família judaica sendo eu de origem católica, o porquê de tanto se “fecharem em comunidade”. Talvez Gustavo e Zé, que também tem de uma certa maneira origem judaica, consigam trazer mais explicações.
É fato que, tempos depois, de alguma forma, constatei que o coletivo pode, sim, fortalecer minorias, como tenho testemunhado com a criação do Estratégicas, há 4 anos. Somos uma mistura bem amalgamada de mulheres em posições de liderança que aportam sua experiência na interação com seus clientes internos nas empresas e vivências de carreira em conjunto com sócias de escritórios de advocacia, cujas atuações são normalmente mais específicas nos assuntos jurídicos e, através de encontros mensais de discussões em torno de temas do interesse do grupo, pretendemos nos fortalecer, expandindo possibilidades de carreira no mercado de trabalho e na vida. A presente coluna trará um recorte dessas discussões através de artigos mensais de nossas mulheres Estratégicas.
Finalizo, então, mencionando que o epílogo do livro do Gustavo muito me tocou: um grande jurista abrindo sua história e, mais importante, sua vulnerabilidade, ao relatar os episódios de pânico e perdas irreparáveis de entes queridos no período da pandemia. É preciso ser grande mesmo para se fazer isso. As batalhas sempre virão, já que vivemos com o desconhecido a nossa frente. Eu mesma agora atravesso uma transição e sigo em frente, criando o caminho à medida que ele se apresenta e - me apropriando da sua metodologia, Gustavo - quando chegarem as novas batalhas vou enfrentá-las até que a vida me abençoe! Com as Estratégicas e com amigos como Gustavo, Zé e tantas outras mulheres e homens próximos e grandes juristas, o caminho será certamente bem mais divertido e fácil. Vamos em frente!!
*Coletivo de mulheres fundado por Maria Goldberg, Fernanda Pantoja, Michele Lyra, Sofia Temer e Marcela Perez fundado em 2021, no Rio de Janeiro, com o objetivo de reunir mulheres advogadas que atuam em posição de liderança, na área jurídica ou executiva, em ambientes corporativos ou como sócias de escritórios, de forma a criar um hub de compartilhamento de conhecimento e de experiências. A partir da discussão sobre temas sensíveis relacionados ao contencioso empresarial, à gestão jurídica e às dificuldades e particularidades desta carreira, o grupo busca contribuir para o desenvolvimento pessoal e profissional das integrantes, bem como para o fortalecimento de uma potente rede de apoio. O coletivo ganhou corpo ao longo dos anos, com a expansão dos encontros mensais, inicialmente realizados no Rio de Janeiro, também para São Paulo. Visite nosso site www.estrategicas.com.br e perfis no Linkedin e Instagram.
Sobre a autora
Maria Goldberg é fundadora e líder do grupo de mulheres Estratégicas e executiva jurídica com 25 anos de experiência em todas as áreas jurídicas. Possui atuação em grandes empresas multinacionais de capital aberto e fechado dos segmentos de infraestrutura, óleo e gás, educação e energia bem como em escritórios de advocacia de grande porte. Com formação artística em dança, mestrado em regulação e concorrência, duas pós graduações (direito empresarial e gestão), além do Program for Leadership Development na Harvard Business School.