Por Marília Campos Oliveira e Telles* e Luiz Telles *
Na década de 70, no interior de São Paulo, o terreno da casa da bisavó dava fundos para a linha ferroviária. Um muro de apenas um metro de altura separava o quintal dos trilhos onde passavam os trens regularmente. As crianças sempre se sentavam nesse muro para conversar e bater papo, mas a regra era clara: não se podia pular para o outro lado. Não havia cerca elétrica, câmeras de segurança ou sistemas de monitoramento. Era apenas isso: o muro baixo e a consciência de que do outro lado havia perigo real.
Os limites eram físicos, visíveis e as consequências, tangíveis. Hoje, quando falamos dos riscos do uso de tecnologia por crianças e adolescentes, estamos lidando com fronteiras invisíveis, perigos imateriais e consequências que nem sempre conseguimos antever.
Nossa experiência como pais se deu durante a transição para a era digital. Quando nossos filhos, Pedro (nascido em 2002) e Bento (2004) eram pequenos, não havia smartphones. O contato deles com celulares aconteceu apenas na adolescência, o que nos permitiu estabelecer bases sólidas antes da chegada dessa tecnologia revolucionária.
Desde sempre, uma regra fundamental permeou nossa casa: as normas sobre tecnologia valiam para todos – pais e filhos. Não havia celular à mesa durante as refeições, pois esse era o momento de saborear a comida e conversar. Não havia telas na hora de dormir, nem aparelhos de televisão nos quartos e criamos o combinado de todos os celulares ficarem juntos carregando na sala durante a noite. Essa igualdade de tratamento era fundamental, pois reconhecia que nós, adultos, também corremos riscos.
Numa época em que o telefone fixo ainda era usado, essa regra era mais simples. Hoje, muitos de nós precisamos do celular próximo por diversas questões – como cuidar de pais idosos que podem precisar de contato imediato. Isso exigiu novos combinados familiares, demonstrando que as regras precisam evoluir com os contextos.
Anos atrás, durante as férias escolares, quando os videogames ainda dependiam de consoles físicos – não eram jogos que simplesmente se baixava no computador -, havíamos combinado tempos específicos para o uso dos games, mas o descumprimento era constante. A solução foi radical: todos os controles foram para o trabalho na minha bolsa. Só voltavam para casa no final do dia, quando eu poderia estar presente para acompanhar o cumprimento dos horários.
Hoje, como seria o paralelo dessa situação? A própria evolução tecnológica tornou o controle físico quase impossível. Isso reforça algo fundamental: cada vez mais, as regras precisam estar dialogadas e conversadas na família, porque tudo se tornou imaterial, e se os jovens quiserem contornar as limitações, encontrarão formas de fazê-lo1.
Tivemos outra experiência, quando nosso filho mais velho tinha 09 anos, com um jogo online que havia se tornado popular na escola, Club Penguin, e as crianças compartilhavam suas senhas para "ajudar" uns aos outros, entrando nos perfis dos colegas. Inevitavelmente, alguns "pinguins" começaram a ser "furtados" – equipamentos virtuais eram roubados por colegas que usavam as senhas compartilhadas.
Aproveitamos a oportunidade e, junto com outros pais da escola, organizamos uma conversa com as crianças do quinto ano. A mensagem era simples: "Senha é como escova de dente – você não empresta. É como a chave da sua casa – você não dá para qualquer pessoa”. Era preciso ensinar sobre segurança digital usando analogias que fizessem sentido para elas.
Essa experiência nos levou a organizar encontros mais amplos através da organização de pais da escola (OPS)2. Todos nós, pais, adorávamos usar a internet e smartphones – não queríamos demonizar a tecnologia, mas ensinar seu uso responsável. A mensagem era de equilíbrio e atenção, não de proibição. Assim como conversamos com nossos filhos sobre outros riscos da vida adulta – álcool, drogas, relacionamentos –, precisávamos abordar a tecnologia com honestidade. E, ainda, considerando o fato de que o amadurecimento cerebral de crianças e adolescentes é insuficiente para lidar sozinhos com certos riscos digitais.
O Diálogo Como Caminho
A conversa se revelou nosso caminho para educar. Não há aparato tecnológico que compense a falta de diálogo. E dialogar significa colocar-se em posição de vulnerabilidade, admitindo nossos próprios medos e desconfortos.
Uma conversa com o pai de um amigo do Bento foi marcante. Ele perguntou, perplexo: "Como vocês conseguem fazer o Bento ir dormir? Meu filho fica até duas da manhã vendo coisas no celular." Nossa resposta foi direta: é o adulto quem decide isso, não a criança! Em última análise, quem paga a conta do celular? Quem tem a responsabilidade parental?!
Estabelecer limites significa cuidado – e não autoritarismo. Usar o "não" de forma consciente, evitando banalizá-lo e reservando-o para momentos realmente importantes. Deixar os filhos terem suas experiências para que possam aprender com as consequências e desenvolver discernimento próprio.
A criação de uma rede de apoio com outras famílias foi fundamental. Conversas frequentes com famílias que compartilhavam valores similares nos fortaleciam mutuamente. O “Movimento Desconecta"3 é um exemplo atual dessa organização comunitária, baseado na premissa de que é preciso a comunidade para transformar a sociedade.
Percebemos hoje que esta rede foi formada a partir de uma ÉTICA de educar nossos filhos que nos era – e é – comum, para além de regras sobre o uso de telas, refletindo um jeito de estar no mundo com nossos valores.
Como dissemos, em casa não havia telas nos quartos de dormir: era uma prática consciente que promovia o sono saudável e momentos de convivência familiar. Contudo, a pandemia de 2020 nos forçou a revisar essas regras. De repente, as telas se tornaram indispensáveis para estudo e trabalho. A escola entrou nas telas, assim como o mundo e a convivência social. Dois adolescentes e dois adultos precisavam de espaços privativos para suas atividades online simultâneas.
Assim, as telas entraram nos quartos, mas reforçamos a importância dos combinados para garantir momentos de convivência sem tecnologia. Como o controle físico ficou mais difícil, a educação pelo diálogo e pelos combinados se tornou ainda mais essencial4.
Um ponto que nos chama atenção é como toda essa discussão sobre uso de tecnologia ainda está à margem do debate sobre IA. Em breve, esse será um tema central para pais e educadores. O risco de confundir o que é real e o que é sintético exigirá novos tipos de conversa e, provavelmente, mecanismos obrigatórios de identificação de conteúdo artificial.
Mas a essência permanece: o diálogo continuará sendo absolutamente necessário. As ferramentas mudam, os riscos evoluem, mas a necessidade de conversas honestas e constantes entre pais e filhos permanece como nosso recurso imprescindível. E conversa mesmo: mais que falar, escutar o que os filhos dizem.
Insights Para a Ação: Construindo uma Relação Saudável com a Tecnologia
Nossa experiência nos ensinou algumas lições práticas que podem inspirar outras famílias:
Estabeleça regras que valham para todos. Se não é saudável para as crianças, provavelmente não é para os adultos.
Use riscos controlados como oportunidades de aprendizado. A experiência do Club Penguin nos ensinou sobre segurança digital de forma concreta. Pequenas perdas podem gerar grandes aprendizados.
Construa uma rede de apoio com outras famílias. Conversar, trocar experiências e criar estratégias coletivas fortalece todos os envolvidos. A educação digital é um desafio comunitário, não individual.
Mantenha o diálogo sempre aberto. Não se trata de dar sermões, mas de ter uma troca real. Exponha suas próprias vulnerabilidades e desconfortos – isso constrói confiança.
Adapte-se aos novos contextos sem perder a essência. As regras devem mudar e os princípios devem permanecer.
Reserve o "não" para momentos importantes. Não banalize a negativa. Quando usada conscientemente, ela tem muito mais impacto e é respeitada pelos filhos.
Aceite que o controle tem limitações crescentes. À medida que a tecnologia evolui, nossa capacidade de controlar o acesso diminui. Isso torna o diálogo e a educação ainda mais cruciais.
O muro baixo dos trilhos do trem pode ter dado lugar a fronteiras invisíveis, mas a necessidade de limites claros e cuidado permanece a mesma, afinal, educar na era digital é educar para a vida. A tecnologia continuará evoluindo rapidamente, enquanto nossa responsabilidade de formar seres humanos conscientes, críticos, criativos e capazes de diálogo permanece.
Sobre os autores
Marília Campos Oliveira e Telles é profissional da resolução consensual de conflitos. Advogada colaborativa e mediadora certificada pelo ICFML. Especialista em Direito de Família e Sucessões. Membro de Comissões no IBDFAM, OAB/SP, Gemep/CBAr e do grupo Famílias no Século XXI do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae/SP;
Luiz Telles é artista plástico, publicitário, contador visual de histórias. Atualmente é Diretor Nacional de Storytelling da Artplan e Chief Story Officer do A-LAB. Especialista em Storytelling, estrategista de comunicação e líder na transformação de narrativas para negócios e carreiras. Com mais de 20 anos de experiência, atua como palestrante, mentor e criador do método Storytelles.
Referências
Recomendamos a leitura do artigo “‘Kids can bypass anything if they’re clever enough!’ How tech experts keep their children safe online”, em https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2025/mar/16/how-tech-experts-keep-their-children-safe-online
Para conhecer a história dessa rede família – escola – comunidade: https://site.veracruz.edu.br/documentos/link/ops/ops_15anos_ops_vera_cruz_2022.pdf
Movimento Desconecta - Organização de pais focada em promover o uso consciente de tecnologia por crianças e adolescentes. https://movimentodesconecta.com.br/
Para quem curte podcast, recomendamos este episódio (e seguir o Resumido) do jornalista Bruno Natal: https://resumido.cc/podcasts/criancas-conectadas-o-preco-da-infancia-digitalizada/